Publicado em Novembro de 2014, este conto é uma prequela do Surreal, se conectando aos contos "Eu dou as Cartas" e "-Pega!".
Apesar da conexão com dois dos contos mais macabros do livro, não é um conto de terror!
Ele narra a origem das personagens Mafalda & Vanédia, que em breve também estrearão sua própria série.
AmanteigadosUm conto sobre amizade
Juliano G. Leal
Feliz, 2014
Para todos aqueles que já ouviram falar de uma vovó sapeca e de sua simpática cuidadora.
Amanteigados
As pessoas se aglomeravam na porta do condomínio. Ouvia-se o burburinho e nele se sobressaíam aqui e ali expressões de espanto e preocupação.
– Não mexe nela! Pode piorar a situação, tu não sabe se tem alguma fratura!
– Sei o que eu tô fazendo, já fiz isso mais duas vezes só esse mês! Ela é teimosa, não pede ajuda e não aceita ajuda! Depois se estabaca!
– Ah, te para quieto e me junta, Éder. Pronto, pedi!
Num esforço conjunto eles conseguiram colocá-la em pé.
– Ai! Descadeirei de vez!
Os que estavam começando a relaxar, contraíram os ombros visivelmente e se moveram por reflexo para perto da vovozinha, temendo que ela fosse cair mais uma vez.
– Calma povo, alarme falso. É só a sambica doendo. Devo ter batido osso com osso. Eu tô bem. A grama é fofa e eu sou leve.
Uma moça morena e baixinha chega correndo do interior do prédio.
– Vozinha! Fazendo arte de novo!
– Não foi nada Mel! Foi esse daí que te chamou? Ele acha que eu sou de papel. Ou quem sabe açúcar! Não posso espirrar que ele acha que eu vou apitar na curva! É só um espirro viu estrupício! É diferente de último suspiro!
Seu Éder sorria tranquilo enquanto voltava a se acomodar na cadeira da portaria.
– Se já tá me aporrinhando é porque tá boa! Hehehehe.
– Obrigado pela ajuda. Depois a Mel traz um bolinho pra tu jogar no sumidouro!
– Às ordens, dona Mafalda. A senhora sabe que a gente se preocupa.
Tomaram o elevador.
– Vó, a senhora não pode mais ficar sozinha. Tá na hora de uma pessoa vir lhe ajudar.
– Não minha filha, foi bobeira minha. Eu me cuido, podia ter sido com qualquer um.
– Não três vezes num mês, vó. O pessoal do condomínio é como uma família pra senhora, mas nós não temos como cuidar de ti do jeito que tem sido necessário. As gurias também acham que a senhora não pode mais ficar sozinha. Quando elas chegarem pro jogo a senhora se entende com elas.
Chegaram ao apartamento de Mafalda. Mel a ajudou a se trocar. Um tornozelo ralado pedindo por um bandeide, fez Mel franzir a testa.
– Ah Melissa, foi só um raladinho. Isso logo passa. Segunda gaveta da cômoda.
Mel abriu a gaveta e pegou o kit de primeiros socorros. Colocou o curativo e repetiu enfaticamente:
– Vamos procurar alguém de confiança para te ajudar. As cuidadoras existem exatamente pra isso.
Mafalda fez uma cara de “desisto por hora pra evitar discussão” e olhou pra janela pra “contemplar o nada”. Melissa foi saindo.
– São vinte pras sete, as gurias devem estar chegando. Se não quiser descer hoje, não precisa. Fica em casa e descansa.
Mafalda não respondeu. Estava levemente irritada. Detestava quando tentavam coordenar a vida dela.
Onde Melissa via uma proteção, Mafalda via uma prisão.
E ela não desceu mesmo. Mas isso não impediu as gurias de subirem. Após alguns minutos de leve discussão, Mafalda concordou com elas e aceitou contratar uma cuidadora.
– Então eu coloco um anúncio no jornal e vejo quem liga.
– Não dona Mafalda! Não acho prudente. Anunciar uma idosa sozinha não é nada sábio. Pode expor a senhora a um delinquente. Vamos procurar uma agência. Lá as pessoas precisam comprovar referências.
– Que exagero Lívia! Vocês desconfiam de tudo. Os classificados sempre funcionaram. Vamos olhar nos empregados que se oferecem então.
– Sim, nos empregados que estão cadastrados na agência. A Diana conhece uma penca de gente que trabalha com seleção de pessoal e várias agências boas.
– Tá bom então. Não vou discutir com vocês. Façam como acharem mais adequado. Só tente não me arrumar uma pessoa metida e mandona. Não quero ninguém se metendo na minha autonomia, nem me tratando como coitadinha.
As gurias riram e se despediram dela.
Na segunda feira, Jéssica foi até uma agência recomendada por Diana para cadastrar a vaga de emprego. Aproximou-se do balcão e disse:
– Quero anunciar uma vaga.
– Tira a fichinha verde e aguarda ali que eu já chamo.
Jéssica não gostou da mornidão da atendente, que sequer olhou para ela. Sentou-se.
Um painel eletrônico piscou com letras grandes e vermelhas acompanhado de um som chato e desafinado de brinquedo de 1,99 com a pilha fraca.
– Fala sério! Recém!
Sua ficha era 162. Uma senhora que estava ao lado dela comentou.
– Sempre demora. Pra tudo demora. A minha é o 72. Azul. Tô procurando emprego.
– E quanto falta?
Ela apontou o painel.
– O jeito é esperar. Muito prazer, Jéssica.
– Prazer, Vanédia.
– A senhora tá procurando vaga de quê dona Vanédia.
– Cuidadora. Trabalho com idosos há 22 anos. Estava cuidando de uma senhora com Alzheimer que faleceu mês passado com 81 anos. Fiquei 5 anos com ela.
– Incrível!
– Realmente. As pessoas não conseguem mais suportar os idosos hoje em dia.
– Não, não é isso. Eu tô procurando uma cuidadora pra uma senhora muito vívida e lúcida de 85 anos, que não pode ficar sozinha porque é muito magrinha e tem osteoporose. Caiu três tombos só esse mês, não se quebrou por milagre. Ela precisa de limites e alguém que seja um pouco mais forte que ela pra compras e serviço básico da casa, tipo cozinhar ou organizar junto com ela. Pro grosso tem a faxineira de 15 em 15 dias.
Ficaram se olhando por alguns segundos. Jéssica estendeu a mão sugerindo que Vanédia entregasse a ficha. Ela sorriu e entregou.
– Pode vir comigo conhecê-la?
– Posso!
Jéssica soltou as duas fichas no balcão. A atendente perguntou:
– Vai desistir?
– O que acontece quando uma força irresistível encontra um objeto que não pode ser movido?
– Hein?!
– Tchau!
Vanédia começou a rir.
– Ela não entendeu nada!
– Meu professor de filosofia dizia que quando alguém quer fugir do debate ou de uma explicação demorada, pergunta um paradoxo para desequilibrar o oponente. Ele dizia que a maioria das pessoas se distrai do que está falando pra se concentrar no paradoxo. Poucas percebem e tentam focar no assunto. E apenas algumas se irritam.
– E como nossa amiga ali não tava num debate, simplesmente te achou uma maluca que surtou de esperar e deve ter ignorado tua pergunta.
– Que era o que eu queria. Sair sem dar explicação. Eu ia só largar e sair. Mas ela perguntou aquele “vai desistir” com tanto desdém, que me fazer de louca era melhor que me irritar com ela.
– Eu teria dito “dessa agência, sim”, e saído. Mas confesso que tua atitude foi bem mais divertida.
Entraram no carro de Jéssica e foram encontrar Mafalda. Durante o trajeto, a cuidadora fez diversas perguntas sobre sua possível nova cliente e a amiga respondeu tudo de forma a convencê-la a aceitar a missão.
Ao chegarem ao apartamento e serem devidamente apresentadas, a primeira coisa que Mafalda fez foi pedir referências.
Vanédia tirou uma pastinha de dentro da bolsa e entregou para Mafalda. Era um diário que servia como uma espécie de portfólio. Tinha memórias com anotações dela e dedicatórias das famílias atendidas com informações de contato. Mafalda apontou uma foto.
– Trabalhou com eles?
Vanédia sorriu assentindo com a cabeça.
– Topa uma experiência de 15 dias? Se nos acertarmos, vamos direto pra carteira sem rodeios.
– Quando começo?
– Agora?
Vanédia deu de ombros e perguntou onde poderia guardar suas coisas. Mafalda agradeceu, dispensou Jéssica e levou Vanédia para o quarto de hóspedes.
Começaram a conversar sobre várias coisas. Vanédia, com sua experiência, estava tentando ao máximo não invadir a privacidade de Mafalda. Entre elogios à decoração, risadas por terem lido muitos dos mesmos livros chegaram à sala, onde fotos de família cobriam um piano. Vanédia estranhou o fato de terem fotos sobre a tampa do teclado.
– Ninguém toca?
– Não mais. – Disse Mafalda sorrindo. – Meu marido tocava. Ele faleceu com 63 anos de ELA. Os tratamentos não eram nada eficientes naquela época. Ele foi perdendo a capacidade de tocar. Sofreu muito. Eu cantava pra ele.
– Como ele se chamava dona Mafalda?
– Nicolau.
– É ele aqui?
– Sim. Essa foto é de 1946, quando casamos no civil. Nunca casamos no religioso. Ele veio pro Brasil fugindo dos nazistas e foi morar no interior. Ele começou a me ensinar alemão para que eu entendesse as conversas caso algum simpatizante do Eixo estivesse se escondendo por essas bandas.
– Vocês tinham que denunciar pro governo né?
– Sim. Mas meu pai achou que ele era um nazista disfarçado tentando me perverter. Fugimos juntos. A família dele ficou tão furiosa quanto a minha.
– Conseguiram se reconciliar?
Mafalda fez uma pausa profunda. Vanédia quase se arrependeu de ter perguntado.
– A família do Nicolau foi mais fácil. Quando casamos e comunicamos que estávamos vivendo “uma vida digna”, eles se reaproximaram aos poucos, convivendo normalmente conosco depois de uns quatro anos de aproximação. Meu pai morreu no mesmo ano que fugimos. Minha mãe só aceitou me receber quando soube que ia morrer, mas minha irmã Marina e minha sobrinha Érica vinham muito aqui. O Nicolau ensinou piano pra Érica.
– E onde ela mora agora?
– Ela morreu.
– Desculpe. Não queria fazer a senhora se sentir mal.
– Capaz, não te preocupa. Todos aí nessas fotos estão mortos. Sou a única que sobrou. E minhas amigas não querem que eu vá fazer companhia pra eles tão cedo, então, decidiram te contratar!
– A senhora parece ser bem forte, digo, emocionalmente. E tem um bom senso de humor também.
– Eu tento. Mas o piano realmente me faz falta, se tu quer saber. Tenho saudade de ouvir o meu velho tocando Adon Olam. Depois que ele se foi nunca mais tive um Seder decente. Ele era judeu. Me ensinou todas as festas. Comemorávamos em casa. Nunca fomos à sinagoga. Bem no fundo ele questionava muitas coisas.
– A senhora ainda canta?
– Muito de vez em quando. Já não tenho o mesmo fôlego. Gosta de biscoitos Vanédia? Isso eu ainda consigo fazer. Os melhores amanteigados do condomínio! Não digo do bairro porque tem uma padaria na rua de trás que faz uns muito bons e muito parecidos. Acho que roubaram minha receita.
Minutos depois, enquanto saboreavam os amanteigados, Mafalda falou.
– Acho que a Érica morreu grávida.
Vanédia ficou séria aguardando mais informações.
– E minha intuição me diz que talvez o nenê tenha sobrevivido.
– Mas a senhora tem alguma pista sobre isso?
– Tenho. A Érica tava namorando muito firme um rapazote que era todo derretido por ela. Aí ela engravidou e eles sumiram. Ela morreu e quase foi enterrada como indigente, pois o guri sumiu com as coisas dela. Eu só soube por que puseram uma foto no jornal. Quando perguntei do nenê no IML me enrolaram como se não quisessem que eu soubesse. Acho que devem ter vendido a criança.
– Credo dona Mafalda.
– Vender pra adoção é bem comum, fura a burocracia. Por isso acho que o nenê viveu. Deve ser adolescente hoje.
– A senhora nunca mais viu o rapaz? Como ele era?
– Era bonito. E muito bocó. Mas não um bocó ruim. Era simplório, sem malícia. Eu dizia pra Érica que ele era o príncipe encantado que toda a donzela queria, só que completamente covarde.
– A senhora não lembra o nome dele?
– Bem que eu gostaria! Já tentei, fiz até hipnose. Mas a cachola da véia não é mais a mesma. Tudo que o doutor conseguiu com a hipnose foi uma edição exclusiva das minhas receitas.
Vanédia riu e prosseguiu com a conversa falando nas receitas. Mafalda serviu chá e o primeiro dia foi terminando.
Aquele dia virou mês. Vanédia passou pela avaliação sem nem perceber. O mês virou ano. Anos.
Elas continuam amigas até hoje.
E todos os dias, precisamente às 18:00, tomam chá ou café. Sempre com amanteigados.