tag:blogger.com,1999:blog-71810395618156832292024-03-22T00:28:27.046-03:00Elos SurreaisO Universo Literário de Juliano G. LealUnknownnoreply@blogger.comBlogger10125tag:blogger.com,1999:blog-7181039561815683229.post-89234973211859447522021-01-29T00:57:00.000-03:002021-01-30T23:46:21.356-03:00Lumprada Pradnipas<div style="text-align: justify;">Publicado em Agosto de 2020, este conto inaugura uma nova etapa da nossa série literária. Explorando conceitos e definições que sedimentam a narrativa construída até aqui, tem conexões com os contos Amanteigados, Um Piá Chamado Rosário, contos do Surreal como Sem Limites, Pega e Eu Dou As Cartas. Esses conceitos também estruturam 23:33:43 e Ações Temporais.<br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiW_qMnpMeq8zXRnHpJ1HWjkOr7q5CcOT_JcyOmDN8hCdWUvSRjIVCQP0TFPA_K31xkaklk0I_tlNOa0TkRbFVFT4P9tMvY3IaELnyJfKxet7Q4bpPsq9ny_vRjEtH-NIJT29u_aXgKcngA/s2048/4_1.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1283" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiW_qMnpMeq8zXRnHpJ1HWjkOr7q5CcOT_JcyOmDN8hCdWUvSRjIVCQP0TFPA_K31xkaklk0I_tlNOa0TkRbFVFT4P9tMvY3IaELnyJfKxet7Q4bpPsq9ny_vRjEtH-NIJT29u_aXgKcngA/w250-h400/4_1.png" width="250" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><h1 style="clear: both;"><div style="text-align: center;">Lumprada Pradnipas</div><div style="text-align: center;">Mafalda e a escada para o céu</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Juliano G. Leal</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Feliz, 2020</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div></h1><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><b><i>Este conto é dedicado aos meus amigos de brainstorm, que mesmo sem saber, muitas vezes, entre um assunto e outro, tocam em assuntos que posteriormente se transformam em elementos cruciais em alguma composição. Esse conto está cheio dessas contribuições.</i></b></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><h3 style="clear: both;">Lumprada Pradnipas</h3><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Era uma noite como qualquer outra. As gurias tinham acabado de ligar verificando se estava tudo bem. As janelas estavam fechadas e a cama aguardava quentinha e confortável. Mas Mafalda estava sem sono. Estava com uma ideia fixa. E ideias fixas lhe faziam criar teorias. Várias. Das plausíveis às absurdas. E dependendo da complexidade da teoria, ficava inquieta, agitada. Às vezes, irritada.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Diana a tinha presenteado com um notebook recauchutado que conseguia escrever textos, navegar nas redes sociais e fazer pesquisas. Era mais que suficiente. Mafalda não gostava muito de usá-lo. Não por falta de treino ou conhecimento, não mesmo! Ela dominou o uso do equipamento relativamente rápido. O problema era outro.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Não sei porque deixei elas me enfiar naquele tal de Orkut. As pessoas não gostam da verdade. Não posso postar nada que já ficam me xingando de pessimista. Vou acabar não postando mais nada! Gente chata! Principalmente a gurizada! São uns insuportáveizinhos, e nesse ritmo, em alguns anos, vão ser uma patrulha pseudointelectual querendo decidir o quê as pessoas podem ou não podem pensar, falar ou fazer. Quer saber, dane-se! Vou aproveitar enquanto esse dia não chega pra ser chata e dar uma surra neles. Pelo menos na internet, hehehe.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">O riso a aliviou e ela acabou adormecendo. Mas já passava das 2h da madrugada. Extremamente tarde pra quem não costuma passar das 22:30. Mas aquela não era uma noite qualquer. Algo estava rondando.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Uma energia diferente começou a tomar conta do ambiente. O reumatismo da Mafalda começou a incomodar, e mesmo dormindo, ela se remexia na cama. Na sala de estar, uma luz azulada cintilava de leve por trás das portas venezianas da sacada. A energia estranha parecia vir daquela direção, vazando suavemente pelas frestas, num efeito semelhante às miragens que vemos perto do chão num dia de sol forte, provocando distorções visuais ao redor. Linhas com padrões geométricos começaram a se formar nos tapetes e no veludo do banco do piano. E aumentava.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">A dor nas juntas foi mais forte que o sono e Mafalda acordou. Levantou-se e saiu murmurando em direção à cozinha para tomar um remédio pra dor.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Será que vai chover? Era só o que me faltava! E esse zumbido estranho. Só pode ser aquele piá aqui de cima inventando coisa. Deve tá testando alguma engenhoca e eu tenho que aguentar a interferência dele. Ouvido de velho é assim, não ouve o que precisa e o que não devia acaba ouvin…</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Estancou no corredor, em frente a porta da cozinha, a dois passos de chegar na sala. Olhou atônita para o cenário inacreditável que se armava - literalmente - diante dela.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Alguns objetos estavam flutuando, as cortinas estavam completamente enroladas em espiral, os vidros da porta da sacada pareciam estar líquidos ao olhar daquela distância e o piano estava vibrando em acordes acidentais de quartas descendentes e nonas.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">De repente, uma onda horizontal de cor lilás se espalhou como uma explosão através de toda a sala, acompanhada de um som grave muito forte e um brilho intenso que fizeram a porta da sacada abrir e tudo tremer. Mafalda caiu sentada enquanto via que algo também caiu porta adentro. Mesmo apavorada, conseguiu ouvir alguém falando:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Não demora!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">O brilho cessou quase que instantaneamente após a frase e tudo estava exatamente onde deveria, exceto pelas marcas nos tecidos e a porta aberta. E o que quer que tenha entrado.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Mafalda, a essa altura, já havia deslizado para o corredor, onde pegou de dentro de uma estante-biblioteca, um estilingue e algumas bolas de gude. Andou até um ponto em que ficasse na penumbra do corredor mas também pudesse visualizar boa parte da sala. A mureta que separava a sala da entrada a impedia de ver justamente a parte do recinto onde "a coisa" parecia ter caído. Alguém falou:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Não vou te machucar, preciso de ajuda!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Um arrepio subiu sem dó pela espinha dela, cuja reação instantânea foi carregar uma olho-de-gato e retesar todo o tirante. Respondeu:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Eu vou te machucar muito, e pedir ajuda da polícia se tu não te explicar imediatamente!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">A voz tinha um dono, e prosseguiu:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Fiz uma viagem longa, complicada e perigosa pra poder falar com a senhora. Então, por favor, me escute com atenção. Não vou lhe fazer nenhum mal. Estou parado do mesmo jeito que caí aqui, apoiado sobre o pé direito e o joelho esquerdo, com minha mochila nas costas, minha bengala na mão esquerda e minha mão direita no chão.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Solta a bengala. Atira perto do piano onde eu possa ver.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">A bengala deslizou pelo piso encerado, passou o piano e parou na parede. Ela se aproximou devagar da abertura e pôde ver o pé e as costas dele, suficiente para confirmar que estava dizendo a verdade. Mas se surpreendeu. Ele era bem menor do que sua voz grave e aveludada indicava. Pelo menos para os padrões associados a esse timbre na cabeça dela.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Tu é um anão!? Porque um anão de bengala invadiu meu apartamento de madrugada?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Me desculpe, eu realmente ia bater antes de entrar e…</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- E porque raios alguém entra pela janela DO NONO ANDAR DE UM PRÉDIO?! Como foi que tu escalou até aqui? E se tu é tão gentil como tá tentando inferir, porque não tocou o interfone?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Eu posso explicar tudo. Permita que eu me apresente e por favor, abaixe sua arma. Eu reitero que não sou violento e não quero fazer nenhum mal, inclusive lhe trouxe um documento que prova que…</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Por inocência, nervosismo ou descuido, ele fez menção de pegar algo de dentro da capa que estava vestindo. Sentindo-se ameaçada, Mafalda atirou. Ele girou pela esquerda soltando a capa para apoiar-se no chão e pegou a bolinha de gude que passava sobre ele no ar com a mão direita depois de ela ter passado, caindo de costas no chão aos gritos.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Por favor, não atire, a senhora mirou no meu olho, isso me mataria ou me deixaria muito mal. Eu sou pacífico, eu não queria vir, eu PRECISEI vir. Me ouça por uma hora e se não entender o que eu preciso fazer, irei embora. Eu juro!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Mafalda acendeu a luz com o cotovelo esquerdo enquanto carregava outra bulita, mas não atirou. Ficou perplexa.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Tua cor! Que raio de cor é essa? O quê tu é afinal de contas!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- A senhora vive em cima de um elo surreal.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Ãhn?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Um ponto onde duas ou mais realidades ou ambientes quanticamente entrelaçados se tocam e eventualmente podem se tornar mutuamente acessíveis no multiverso.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Uma ponte de Einstein-Rosen? Tá de brincadeira!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Er, isso é uma simplificação bem rasteira do que eu acabei de falar. Mas tudo bem, se vai lhe ajudar a entender e não atirar em mim, serve.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Daqui a pouco eu volto no buraco de minhoca, mas primeiro me explica como tu sabe falar minha língua perfeitamente. É algum aparelho? Alguma pílula? Um peixe no ouvido? - Mafalda baixou a arma.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Na verdade nenhum. Eu falo muitos idiomas fluentemente. Algumas centenas deles pra ser sincero. - Ele sentou no chão com as mãos cruzadas na frente do corpo.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Acho que agora eu devia perguntar teu nome.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Me chamo Lumprada Pradnipas, alto-comissário de Hashmanum, um lugar que foi se tornando completamente desconhecido para o seu povo ao longo dos últimos 360.000 anos.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Isso me força a acreditar que alguém morava aqui há 360.000 anos e conhecia o teu povo. Tá forçando a parceria. E isso não é nome, é um trava-língua!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Tem duas verdades na sua conclusão. Quem conhecia meu povo não morava originalmente aqui, mas veio pra cá. E não conhecia apenas o meu povo, mas muitos outros. E ensinou o seu povo a desejar maliciosamente as riquezas das outras nações e a buscar a guerra. O Rei do Universo anunciou que os puniria por isso. Que enviaria Seu juízo e haveria choro e ranger de dentes…</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Já ouvi essa história. Deus mandou o dilúvio.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Dilúvio? Ah sim! Essa é a única informação sobre um julgamento no que vocês chamam de pré-história. Mas não é disso que eu tô falando.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Mafalda sentou-se no chão diante dele.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Tá falando do quê então?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Do gelo. Tudo ficou completamente congelado pelo menos umas 3 vezes. Isso cumpriu o ranger de dentes. Houveram várias extinções.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Fala sério! Tu tá dizendo que tinha gente aqui na Era do Gelo e que foi juizo divino?! Só pode ser uma pegadinha comigo. Cadê a câmera escondida?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Eu falo sério. A senhora acredita mesmo que eu ia me deslocar de uma galáxia muito, mas muito distante só pra vir aqui enrolar uma mulher desse tempo-espaço? Sinceramente dona Mafalda, seria muito contraproducente. Planejamos essa viagem por 9 anos. Se o marcador não estiver devidamente sincronizado com os elos no exato ponto no tempo-espaço para o deslocamento, não podemos viajar. Podemos morrer na tentativa. Mas o Relojoeiro sabe o que fazer.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Ela ficou encarando-o com os olhos semicerrados e uma cara de desconfiança absoluta. Sua mente não estava acreditando em nada. Mas seus olhos estavam testemunhando algo realmente surpreendente. Respirou fundo.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Tá bom, Gênio. Tu vai fazer o quê agora? Me abduzir para lutar contra o Gargamel? Tô meio velha pra Smurfette.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Algum problema com pessoas azuis, Mafalda?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Ela ficou vermelha.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Não! Foi só uma brincadeira! Eu acho o Gênio fofo! E ver um cara pequeninho e azul no meio da minha sala, à noite, me assustando e me dizendo uma pá de coisas malucas, acho que é normal ficar meio zureta!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Eu entendi a brincadeira. Tava só querendo trocar de lugar por alguns instantes.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Ela suspirou novamente.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Tu come a minha comida? Posso oferecer alguma coisa.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Os biscoitos amanteigados, que são famosos há décadas. Décadas suas, alguns dias pra mim.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Como raios tu sabe que eu tenho amanteigados?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Eu falei dos 9 anos de preparo? Do elo exatamente aqui? Nem mais pra baixo, nem pra cima, nem pra esquerda ou pra direita, mas bem ali no parapeito da sua sacada, no cruzamento a -30º de latitude e -51º de longitude, no apartamento 90, no 9º andar do prédio nº 18 da rua. Tudo aqui converge para a conexão.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Eu não acredito em karma, predestinação ou qualquer coisa que fixe, fatalize ou pré defina o destino!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Não é isso. É mera matemática. Esse lugar vibra numa frequência tão poderosa que induziu toda essa “coincidência”. E o cheiro dos amanteigados vaza direto pro lado de lá. Só que para cada ano daqui, passam 36 minutos lá. Então tem horas que o cheirinho é uma tortura, pois simplesmente não pára.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Vou pegar. Quer beber alguma coisa?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Às vezes passam sons pra lá, foi como associamos o cheiro. Mas não sei o quê é maçã com canela. Não existe isso em Hashmanum. O Relojoeiro sabe. Ele é daqui, e nos procurou por necessidade. Mas se negou a me contar o que era. Disse que eu deveria esperar e experimentar. Tu tem, né?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Mafalda riu.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Tenho. De dois tipos inclusive. Um que é mero gosto, outro que é natural. Vou fazer o melhor, já que tu nunca experimentou.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Algo brilhou, semelhante a purpurina dourada, oscilando como ondas pela pele dele.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- O que foi isso? - Perguntou Mafalda.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Alegria, entusiasmo, expectativa, esse tipo de sensação. Nossas reações às emoções são sempre assim. Isso torna praticamente impossível mentir.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Isso podia ser transformado num gás e espalhado na nossa atmosfera. Pode me acompanhar até a cozinha?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Não tá mais com medo?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Não. Tu não parou de brincar com a bulita que tu pegou. Tu é diferente, me deu um baita susto e despejou em cima de mim um monte de informações que a maioria das pessoas acharia maluquice. Mas já vi que tu não é perigoso.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Foram até a cozinha. Ela serviu os biscoitos. Colocou uma porção de chá num pequeno bule de porcelana e colocou água quente direto do filtro térmico.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Isso aí é bem prático.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Idosos sozinhos precisam de praticidade. Desde que meu Nico se foi, eu fui investindo em coisas assim. Decidir ficar sozinho exige planejamento.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Concordo plenamente. Eu também sou viúvo. Ela morreu quando eu tinha 126 anos e ela 120, num acidente de um voo entre Hashmanum e Sahmu. Tive sérias dificuldades de voltar a viajar pelo espaço depois disso. Eu olhava as constelações preferidas dela surgindo no caminho, e desejava que a escuridão ao redor as apagasse. Mas com o tempo, me curei e voltei a saudar a escuridão como uma velha amiga de trajeto.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Servindo o chá, ela pergunta:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- 126? E quanto tu tem agora se não se importa em dizer?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- 171.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Ondas em tons de lilás e violeta cintilaram enquanto ele provava o chá.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- E isso agora?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Prazer, satisfação, plenitude. Essa combinação é muito agradável!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Qual a média de vida do povo de vocês?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Cerca de 300 anos. Entre nós você seria extremamente jovem. E já que você falou em colocar coisas na atmosfera, as que vocês colocam, desgastam e estragam os corpos de vocês muito depressa. É como se vocês respirassem morte de bom grado, trocando constantemente um pouco de vida por um pouco de conforto extra. Posso usar seu forno de micro-ondas?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Pode...</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Ele pegou um objeto semelhante a um dado com um apoio num dos cantos, como se fosse um mini-troféu. Não era maior que a bolinha-de-gude que o alvejara. Colocou no forno, sob o olhar curioso e atento da Mafalda e programou o forno para 30 minutos.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Isso não é metal, né? Esse forno é potente!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Isso é um Polímero Ultra-denso Micro-ativado. Na minha língua é sktktk.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">O objeto começou a emitir um brilho esverdeado e surgiram imagens e sons na porta do forno, ajustados perfeitamente ao vidro, transformando-o numa tela.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Eu sabia que TV na cozinha era supérfluo.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Olha, é ela ali. Minha Prilacnis!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Que lindinha ela. Sinto muito pela sua perda.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Mafalda viu dessa vez, sobre a pele dele, uma onda dourada rápida que migrou para um rosa pálido e esvaneceu. Ele antecipou a resposta.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Saudade.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Mafalda apenas deu um sorriso melancólico. Ele prosseguiu.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Eu era um pesquisador. Viajava toda a hora atrás de matéria-prima para a indústria de tecnologia. Ela era inventora. Criava coisas com o material que eu encontrava. Foi ela que criou esse dispositivo. As pessoas usam basicamente para deixar recados. Uma grava enquanto prepara sua refeição e a próxima assiste quando chega sua vez de usar o forno. Era uma forma divertida de aproveitar o tempo e gastar energia apenas uma vez. Hashmanum vive em constante racionamento de energia. Resultado do Anzillu. E foi por causa dos causadores do Anzillu que o Relojoeiro me trouxe aqui. Precisamos alertar vocês sobre os Apóstatas.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Pelo visto são um grupo de pessoas que abandonaram alguma fé. Se bem que às vezes isso é uma coisa boa.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Concordo! Quando a pessoa abandona atitudes destrutivas e coopera com o sucesso e o desenvolvimento do próximo. Só que quando o motivo é exatamente o contrário, ou seja, espalhar morte e destruição por onde passam, é só apostasia mesmo.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- No início tu disse que alguém veio aqui nos ensinar guerra e cobiça, deduzo que seja de quem tu tá falando agora.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Eles acreditam que existem dois tipos de gente. Os que funcionam e os que não funcionam.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- E deixa eu deduzir, acreditam que a melhor maneira de resolver o “problema” dos que “não funcionam” é eliminá-los?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Err, mais ou menos. Eles acreditam que podem “aperfeiçoá-los” através de reprodução assistida, mesclando os genes deles nos outros povos.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Já vi esse filme...</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Na verdade foram eles por trás da figura que tu tá lembrando.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Hein?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Sim. Toda a forma de eliminação das variantes dentro de uma espécie sob a premissa de que apenas uma seria especial e mais digna, vem direto deles.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Tu tem noção de quanto isso soa teoria da conspiração?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- A senhora ficaria surpresa com a quantidade de acertos aleatórios desses teóricos. Eles só não conseguem acertar em cheio porque estão montando um quebra-cabeças com zilhões de peças, sem gabarito, sem a mínima noção da imagem final. Eles vivem de atirar no escuro. E esperam estar certos, mas eles também não têm noção disso, só têm esperança mesmo.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Tu tá com pressa né? Tá despejando informação. Se tu tem tecnologia para transformar meu forno num projetor multimídia, devia ter trazido alguma coisa gravada pra mim.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Eu trouxe! Tá naquele dispositivo do forno mesmo. Eu vou deixar instruções caso a senhora queira assistir no microondas. São 9 horas de conteúdo.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Vocês tem uma cisma com o número 9 né?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Não é cisma, é ciência. O número nove é um pilar quântico.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Ok. Eu não manjo muito de nada quântico, mas deduzo que é de física que tu tá falando. Também não me acho muito inteligente e a minha cabeça já anda rateando por causa da idade, mas tô disposta a tentar entender isso tudo, afinal, acho que vocês não me escolheriam se fosse pra chegar aqui e dar tudo errado.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Exatamente! Bom, começando pelo nove e resumindo aquilo que é mais importante nesse momento. Pensa em todos os ingredientes que são necessários para produzir esse biscoito. Cada um é diferente entre si, cada um tem uma textura, cada um tem uma cor, um cheiro, um sabor e, às vezes, até temperaturas diferentes em repouso. E essas são apenas as características mais óbvias. Além de tudo isso, existem as características de cada um dos elementos químicos que formam cada um dos ingredientes. Carbono, ferro, oxigênio, hidrogênio, cloro, fósforo, cálcio, potássio, sódio. Tá tudo aqui, em diversas camadas de realidade. Ele é doce, macio, seco...</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Achou ele seco? Não gostou?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-O biscoito é excelente, Mafalda. Eu não quis dizer seco ao paladar, mas seco como oposto de úmido ou molhado. A língua de vocês é difícil! Enfim, doce, macio, seco, pequeno, leve, quadrado, cheiroso, chanfrado e assado. A realidade é como esse biscoito do exemplo, com diversas camadas que não são exatamente óbvias ou organizadas em ordem como prateleiras ou fileiras numa tabela, ou sobrepostas como uma cebola, como a mente de vocês foi adestrada a pensar. Elas estão juntas aqui, quase todas misturadas. Algumas podem ser percebidas por um sentido só, outras por mais de um. O fato de não percebermos tudo imediatamente ou de nunca percebermos tudo, não altera o fato de estar tudo ali.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Entendi. Meu biscoito é quântico. E o nove?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Antes de responder, Lumprada deu uma gargalhada e ondas amarelo-alaranjadas misturadas com a purpurina dourada vibraram com tanta intensidade que ele ficou esverdeado!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Sim Mafalda, seu biscoito é de certa forma quântico, e se eu puder levar alguns comigo, também será transdimensional. Aliás, preciso mesmo levar algo daqui pra lá pra que aconteça uma troca equivalente. Só assim poderei deixar o sktktk contigo.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Eu não consigo pronunciar isso aí. Parece o barulho que o despertador faz quando dou corda. Escreve com o meu alfabeto aqui nesse papel, porque o teu não me adianta.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">“SKTKTK”</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Mafalda deteve o olhar por alguns instantes nas letras e falou:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Soquete-catraca! Fica mais fácil pra mim assim. Vai ser soquete-catraca daqui pra frente.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Lumprada riu novamente e prosseguiu.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Então, a realidade existe em diversas dimensões simultaneamente. Você vive no açúcar, eu na farinha, o Anzillu aconteceu, digamos, entre a farinha e a manteiga, mas está se aproximando daqui e toda a população do açúcar corre perigo.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-O Multiverso num biscoito amanteigado seria um bom título de livro, não acha?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- O Relojoeiro é um verdadeiro fã dessas suas respostas e do seu raciocínio espirituoso.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Parando pra pensar, é meio aterrador saber que vocês estavam me vigiando de outra dimensão esse tempo todo. Gostaria de uma explicação melhor pra isso antes de prosseguirmos.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Não estávamos exatamente te vigiando. Estávamos monitorando a atividade nas fendas dimensionais e pesquisando em qual delas havia alguém com quem pudéssemos interagir para dar os avisos que precisamos transmitir. Todas as imagens que o nosso equipamento conseguiu captar, se limitam propositalmente aos 9 m² ao redor da fenda, ou seja, a sua sacada mais o tamanho exato dela pra fora do parapeito, por uma questão ética. Já os sons são outra história, captamos até 99 m². E antes que você pergunte, todos os nossos equipamentos trabalhavam com valores normais em escala decimal, hexadecimal ou binária, como parecia ser a lógica no universo, até que uma análise dos relatórios das sucessivas falhas no projeto jkbldr nos fez perceber que precisávamos ajustar os instrumentos para varredura em múltiplos de 9 e começamos a ter sucesso. E ainda estamos tentando descobrir o que acontece com os cheiros, pois como te disse antes, os cheiros “vazam”. Creio que alguns elementos orgânicos tenham uma composição molecular específica que harmoniza ou até simbioniza com a fenda e passa de uma dimensão a outra sem dificuldade. Isso inclusive ajudaria a desenvolvermos uma tecnologia de viagem transdimensional mais eficiente, o que o Relojoeiro já confirmou que conseguiremos.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Peraí! Quem é esse Relojoeiro de quem tu tanto fala? E como é que ele pode confirmar que vocês vão conseguir? Ele é um tipo de profeta?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Não exatamente, mas ele trabalha para que as coisas não descambem.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Não entendi.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-É complicado mesmo. Quando eu o conheci também demorei pra conseguir entender o que ele tava fazendo, mas depois de fazer a primeira viagem com ele, tudo ficou mais claro. Ele chegou lá em casa um pouco depois da morte da Prilacnis, do mesmo jeito que eu cheguei aqui. Só que ao contrário de ti, eu não o recebi com um estilingue. O sistema de segurança da minha casa trancou ele numa cela especial e ficou aguardando o meu comando de execução por invasão de propriedade privada.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Como assim execução?! - Perguntou Mafalda arregalando os olhos.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Em Hashmanum as leis são claras a respeito de tudo. Todos sabem muito bem que não podem invadir uma propriedade. Também sabem que a punição pelos crimes é sujeita à jurisdição onde ele foi cometido, ou seja, eu sou promotor, juiz e executor dentro da minha casa. Eu nunca executaria nenhum invasor. Prefiro expulsá-lo depois de fazer o registro da ocorrência na Base Comum de Dados e deixar que ele sofra as consequências de ter uma infração Nível A nas costas. Era o que eu ia fazer com o Relojoeiro, mas ele não estava cadastrado na base. Logo, ele só poderia ser de um lugar muito atrasado fora da nossa vizinhança, de outra dimensão ou de outro tempo.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Mafalda ficou em silêncio. Era muita informação. Mesmo.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Ok. Três perguntas. Se eu não entender essas, não adianta ir adiante porque não vou conseguir contextualizar. Primeira: Ainda sobre o invasor, não era melhor chamar a polícia?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Não existe polícia. A população faz sua própria segurança com tecnologia de ponta há mais de 700 anos. E também não existe governo.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Meu Nico ia adorar visitar esse lugar...</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Talvez um dia você possa ir lá, mas não depende de mim.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Não sei se aguento uma coisa dessa. Segunda: Tu realmente pensou que ele era de outra dimensão há 45 anos atrás?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Parece muito pra você, mas pra nós não é nada. E sempre tivemos esse conceito. Explorá-lo é que se tornou necessário somente após o Anzillu. Nosso povo sempre teve a postura de não incomodar os outros povos e apenas se defender de ameaças. Se não é da nossa conta, não nos interessa. Mas quando os Apóstatas nos atacaram, percebemos que seria errado guardar a informação sobre eles conosco e deixar outros povos vulneráveis. Então, se iniciou o projeto jkbldr de sondagem das fendas para alertarmos aos possíveis alvos deles.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Terceira. Viagem no tempo?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Teoricamente, se viajarmos no espaço acima da velocidade da luz, conseguiremos “viajar no tempo”. Então, sim, daria pra viajar no espaço de forma que se acesse tempos diferentes. O Relojoeiro tem uma tecnologia avançada e vinha realmente de outro “tempo”. Só que ele atravessa o espaço usando as fendas dimensionais, e não a velocidade da luz. É uma tecnologia que nenhum dos três planetas habitados de nosso sistema ou das centenas de planetas habitados que monitoramos através das fendas, possui.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-E nessa infinidade de gente, lugares e... momentos, surge a pergunta que não quer calar. Porque eu?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Porque você preencheu os pré-requisitos para contato, quais sejam, estar próxima da fenda, ser uma pessoa pacífica e pacifista, ter ficha limpa, ter uma atitude ética e acreditar na possibilidade de contato com uma inteligência de fora da Terra.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Sempre acreditei. Inclusive achava que os nazistas tinham ajuda porque fizeram muitas coisas poderosas com uma tecnologia desproporcional pra época e agora tu me confirmou que foram os Apóstatas. Mas se eles já estiveram aqui e quase nos destruíram, o que realmente os deteve? E porque voltar agora? O que eles querem aqui?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Os Apóstatas de hoje são um grupo diferente desse. Nessas duas guerras que vocês enfrentaram, eles eram apenas uma missão de sondagem para ver se valia a pena investir aqui. Era um teste. Eles queriam entender porque esse mundo absurdamente distante de tudo era tão importante pra Hoste, e consequentemente, para o Rei.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Tu não disse que teu mundo não tinha governo? Como que tem um Rei agora?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-O Rei do Universo. Creio que também o chamam assim aqui. Ele é dono de Hashmanum, mas não governa Hashmanum. Ele nos deu liberdade para escolhermos se viveríamos de acordo com a Lei que Ele nos ofereceu. Nós entendemos, aceitamos e deu certo. Durante milhares de anos vivemos apenas com juízes. Vocês também tiveram uma época assim. Então veio o Anzillu, e como eu disse antes, tivemos que remodelar nossa vida para sobreviver aos novos desafios.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Então Deus é o Rei de vocês, porque aqui só Deus é chamado de Rei do Universo.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Sim, o Criador.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Não acredito que vou fazer essa pergunta, mas porque Ele não resolveu o problema com os Apóstatas? Porque não ajudou vocês no Anzillu?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Mas Ele ajudou. Nós vencemos. E conseguimos isso sem transgredir a Lei, mas obedecendo de forma fiel. Não precisamos de nenhuma intervenção direta Dele, algo que vocês chamariam de milagroso, místico ou sobrenatural. Aliás, de acordo com o que eu entendi sobre esses conceitos de vocês, eu seria sobrenatural, já que venho de uma outra dimensão, não sou igual a vocês, tenho tecnologia que vocês podem considerar divina ou confundir com “superpoderes” e na minha realidade, interajo de forma visível e direta com a Hoste e os Apóstatas. Só pra constar, esses conceitos não existem lá.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Quer mais chá? Mais amanteigados?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Sim, por favor.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Se Deus é o Rei, e tu fala Dele de um jeito tão pessoal, Ele tá perto de vocês? E o que é a Hoste?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-O Rei está onde Ele quiser estar. Ele tem esse poder. Se quisermos interagir com Ele, nós simplesmente falamos, Ele ouve e normalmente responde. Vocês também fazem isso. Pena que a maioria não ouve a resposta e muitos ouvem a Horda pensando que é o Rei que respondeu. A Hoste são aqueles que vocês chamam de anjos. E a Horda, os que vocês chamam de demônios.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Bom, acho que estou oficialmente pasma. Se não tivesse um cara azul tomando chá comigo, eu não acreditaria em nada. E agora nem posso compartilhar isso com as pessoas, pois não vão acreditar em mim. Tenho mais perguntas: o que eu devo fazer com toda essa informação? O que vocês querem de mim? E porque tu e o Relojoeiro vieram me avisar ao invés de Deus falar diretamente comigo, mandar um anjo ou um profeta?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Bem, chegamos ao ponto mais importante da conversa. Você vai receber respostas detalhadas exatamente sobre essas questões quando assistir o conteúdo do sktktk. O que posso te adiantar é que os anjos que trabalham aqui estão muito ocupados em missões de vida ou morte e não estão autorizados a interagir mais com os humanos como era antigamente. E os profetas de verdade, morrem de medo de perseguição e a maioria, sofre de depressão. Ou seja, além de serem raros, também estão precisando de ajuda. E Deus, acho que ele não fala pessoalmente com mais ninguém desde 1998. Voltando ao dispositivo, quando a transmissão dele chegar ao final, uma mensagem surgirá perguntando se você quer ou não ativar o modo de segurança. Essa é uma inovação que eu criei e que o Relojoeiro disse ser fundamental nessa missão. Se você responder “sim”, o dispositivo reproduzirá um vídeo que registrará um número no seu inconsciente, através de hipnose. Após o sim, você vai lembrar de todo o conteúdo que assistiu até que durma. Ao acordar, você não lembrará do conteúdo, nem onde guardou o sktktk ou não saberá o que ele é ou o que fazer com ele, até que o número seja dito por alguém da Hoste ou algum humano enviado pela Hoste ou por nós. Então, pense bem antes de dizer sim para o modo de segurança e caso faça, que seja com tempo de guardar o sktktk em segurança.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Isso é bem assustador. Porque eu ia querer ter meus miolos temporariamente interditados?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Porque se a Horda aparecer fazendo perguntas, você vai poder dizer tranquilamente que não sabe de nada e não terá que fazer um esforço absurdo para mentir ou tentar dissimular para escapar deles. Lembra que eu disse que pra nós é praticamente impossível mentir por causa dos efeitos luminescentes na nossa pele? Nossa solução para isso foi programação hipnótica de alto nível. E no fim das contas, não é mentira. Pois no momento em que você não lembra, você não sabe mais, pelo menos não sabe nada naquele momento. Mas você ainda pode dizer não e lembrar de tudo pra sempre. A decisão é sua.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Então só me resta assistir ao soquete-catraca.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-E decidir o que fazer depois.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Bom, que seja!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Lumprada puxou um scanner do bolso. Uma luz lilás passou sobre os amanteigados e o aparelho fez dois bipes graves e uma voz eletrônica disse meia dúzia de palavras trissílabas. Mafalda perguntou:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-O que foi agora?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-O aplicativo que calcula a troca equivalente sinalizou que a troca não está justa.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Na tela do scanner, a animação de uma balança pendia pro lado do dispositivo, como se os amanteigados estivessem bem leves. Na equiparação de troca uma mensagem dizia:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Terceiro pré-requisito não atendido. Candidato a troca não armazena ou transmite informações. Use algo realmente, equivalente ou complemente o requisito faltante.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Mafalda preciso compensar as 9 horas do sktktk com dados. Me dá um CD velho, que tu não queira mais.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Ela trouxe um CD motivacional que veio junto com um shake emagrecedor. Novos bipes, nova mensagem.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Ele diz que os dados não se relacionam ao conteúdo. Preciso de algo que seja relacionado aos amanteigados.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Tipo o quê?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Sei lá, a receita talvez?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Mafalda arregalou os olhos, mas dessa vez de indignação.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Nem pensar! Não sou doida de mandar minha receita pra outra dimensão. E se por acaso eu escolher esquecer do soquete-catraca a minha receita de amanteigados sumir junto?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Não vai sumir. Eu vou scannear e registrar. É uma cópia. A sua fica intacta.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">- Ah bom! Aí a coisa muda. Que seja então.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Ela abriu uma gaveta no balcão de cozinha cheia de receitas, puxou um caderno de debaixo da pilha, abriu e mostrou a receita. Lumprada escaneou. Mudaram os bipes e frases.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Agora deu certo. Muito obrigado Mafalda, o soquete-catraca é seu. Minha carona deve estar chegando a qualquer momento.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Quando nos veremos de novo?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Isso depende mais de você do que de mim agora. Depende do que você vai escolher fazer com as informações.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">O piano começou a vibrar novamente. Os pequenos objetos flutuaram e a cortina começou a enrolar novamente. Um brilho começou a surgir do outro lado do parapeito. De repente, algo começou a tomar forma, como se fosse uma pessoa de gelatina. Em alguns segundos ele estava lá, parado no ar, sobre algo que parecia uma vagoneta, mas ao invés de ter uma alavanca-gangorra no meio, tinha um painel semelhante a uma pirâmide de degraus de cabeça pra baixo. E o Relojoeiro a operava com os dedos deslizando sobre hologramas. Ao seu redor, diversos outros hologramas se projetavam, a maioria relógios e símbolos afins.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Mafalda, foi um enorme prazer e um privilégio conhecê-la.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-O prazer foi meu, apesar do susto. Posso te chamar de Lu, para evitar o trava-língua?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Claro, sem problema.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Adeus!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Adeus, Mafalda! Se cuida!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">O Relojoeiro falou:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Lembre-se Mafalda, quando você vir o número, ele é um bom rapaz. Só precisa ser acolhido na família novamente.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Quem?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Num flash, eles desapareceram. Tudo que restou foram as marcas no tapete, as cortinas enroladas ladeando as venezianas e aquela vibração no ar semelhante às que acontecem no asfalto num dia quente, que davam naquela penumbra à luz da Lua, a sensação de uma escada para o céu.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">__________________________________________________________</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s928/Prancheta+11.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="500" data-original-width="928" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s16000/Prancheta+11.jpg" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><h3 style="clear: both;">© Elos Surreais<br />Todos os direitos reservados.</h3></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7181039561815683229.post-40701965786872427452017-06-06T03:05:00.003-03:002021-01-28T22:57:33.197-03:00Karyel - Memórias do Exílio<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_WIU8cvvOZIW5qOLgpRgJf_eNALPfgJaDE8FmhyphenhyphenScKRKlj2Q6U7_2jtxdOmnZ4GPBBezYUJyqmY7HInVD4vJsbeFnPQin_CMNGELwrHJzQN1f4y6IWeVAR0JCscE6zT-C4C46U2MpDFLt/s2048/10.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1283" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_WIU8cvvOZIW5qOLgpRgJf_eNALPfgJaDE8FmhyphenhyphenScKRKlj2Q6U7_2jtxdOmnZ4GPBBezYUJyqmY7HInVD4vJsbeFnPQin_CMNGELwrHJzQN1f4y6IWeVAR0JCscE6zT-C4C46U2MpDFLt/w251-h400/10.png" width="251" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Publicado em Junho de 2017, este conto narra uma conversa entre um Ceifador e um Caído, permeado de memórias dolorosas dos tempos de guerra. </div> <div style="text-align: justify;"><br /></div> <div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Disponível em <a href="https://www.facebook.com/commerce/products/1403486299716807">ebook através de nossas redes sociais</a>. Compre o seu!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s928/Prancheta+11.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="500" data-original-width="928" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s16000/Prancheta+11.jpg" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7181039561815683229.post-42148213961928459702017-05-13T01:22:00.020-03:002021-01-29T01:35:09.384-03:00Bispo - A dor do futuro do pretérito<p style="text-align: justify;">Publicado em Maio de 2017, este conto narra a origem de um dos principais vilões dos Elos e também aborda temas como exploração da fé, racismo e violência doméstica.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCLLtfeOx72IzbHByqnHRT-Fz2PnetrJupvbaTzXNgRgnf8-cX1LpWNUz6OxmzgNGtX0cG5lqdFqitYxMhutEoBIH4vjpJwatrWDhbYP_X27BYSz8n6oKZw7LqF296jb4tno_SsZ_Oedi-/s2048/11_1.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1283" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCLLtfeOx72IzbHByqnHRT-Fz2PnetrJupvbaTzXNgRgnf8-cX1LpWNUz6OxmzgNGtX0cG5lqdFqitYxMhutEoBIH4vjpJwatrWDhbYP_X27BYSz8n6oKZw7LqF296jb4tno_SsZ_Oedi-/w400-h640/11_1.png" width="400" /></a></div><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;"><b>Adquira o seu <a href="https://www.facebook.com/commerce/products/5211995002151783?ref=mini_shop_storefront&referral_code=mini_shop_page_shop_tab_cta" target="_blank">através de nossas redes sociais</a>!</b></p><p style="text-align: justify;"><br /></p><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_YHoifJRV_ljenhw8mQruzl92uHecQ96QX9SvKonytTI8S8JS9oGtl0CdIjIOWztpiL9RbYEZ0cQUUM0Trxjod6zRRiQXeR3Ts8g5N9TfS2G0N4gzfQ9vEqBKfYImSlCEi1_m9svb6FWU/s940/14.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="788" data-original-width="940" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_YHoifJRV_ljenhw8mQruzl92uHecQ96QX9SvKonytTI8S8JS9oGtl0CdIjIOWztpiL9RbYEZ0cQUUM0Trxjod6zRRiQXeR3Ts8g5N9TfS2G0N4gzfQ9vEqBKfYImSlCEi1_m9svb6FWU/s16000/14.png" /></a></div><br /> <p></p>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7181039561815683229.post-67099976081145711862014-11-06T19:43:00.005-02:002021-01-28T22:57:56.272-03:00Amanteigados<div style="text-align: justify;">Publicado em Novembro de 2014, este conto é uma prequela do Surreal, se conectando aos contos "Eu dou as Cartas" e "-Pega!".</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Apesar da conexão com dois dos contos mais macabros do livro, não é um conto de terror!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ele narra a origem das personagens Mafalda & Vanédia, que em breve também estrearão sua própria série.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjMMqbO2-lNxIsffK5_zegzpPzsf5WuWAOBXFkj8ZPvNrfvmkitn5uQ3jF4wFaGOXyJzAQB2YAKkCZezlV9_pgpTGc5NocuyhcF25nu6MYer9Rwtk10CW873O4E4ZqMK58mjbrRBHX2nb_l/s2048/2_1.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1283" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjMMqbO2-lNxIsffK5_zegzpPzsf5WuWAOBXFkj8ZPvNrfvmkitn5uQ3jF4wFaGOXyJzAQB2YAKkCZezlV9_pgpTGc5NocuyhcF25nu6MYer9Rwtk10CW873O4E4ZqMK58mjbrRBHX2nb_l/w250-h400/2_1.png" width="250" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><h1 style="clear: both; text-align: justify;"><div style="text-align: center;">Amanteigados</div><div style="text-align: center;">Um conto sobre amizade</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Juliano G. Leal</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Feliz, 2014</div></h1><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><b><i>Para todos aqueles que já ouviram falar de uma vovó sapeca e de sua simpática cuidadora.</i></b></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><h2 style="clear: both; text-align: justify;">Amanteigados</h2><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">As pessoas se aglomeravam na porta do condomínio. Ouvia-se o burburinho e nele se sobressaíam aqui e ali expressões de espanto e preocupação.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Não mexe nela! Pode piorar a situação, tu não sabe se tem alguma fratura!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Sei o que eu tô fazendo, já fiz isso mais duas vezes só esse mês! Ela é teimosa, não pede ajuda e não aceita ajuda! Depois se estabaca!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Ah, te para quieto e me junta, Éder. Pronto, pedi!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Num esforço conjunto eles conseguiram colocá-la em pé.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Ai! Descadeirei de vez!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Os que estavam começando a relaxar, contraíram os ombros visivelmente e se moveram por reflexo para perto da vovozinha, temendo que ela fosse cair mais uma vez.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Calma povo, alarme falso. É só a sambica doendo. Devo ter batido osso com osso. Eu tô bem. A grama é fofa e eu sou leve.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Uma moça morena e baixinha chega correndo do interior do prédio.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Vozinha! Fazendo arte de novo!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Não foi nada Mel! Foi esse daí que te chamou? Ele acha que eu sou de papel. Ou quem sabe açúcar! Não posso espirrar que ele acha que eu vou apitar na curva! É só um espirro viu estrupício! É diferente de último suspiro!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Seu Éder sorria tranquilo enquanto voltava a se acomodar na cadeira da portaria.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Se já tá me aporrinhando é porque tá boa! Hehehehe.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Obrigado pela ajuda. Depois a Mel traz um bolinho pra tu jogar no sumidouro!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Às ordens, dona Mafalda. A senhora sabe que a gente se preocupa.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Tomaram o elevador.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Vó, a senhora não pode mais ficar sozinha. Tá na hora de uma pessoa vir lhe ajudar.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Não minha filha, foi bobeira minha. Eu me cuido, podia ter sido com qualquer um.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Não três vezes num mês, vó. O pessoal do condomínio é como uma família pra senhora, mas nós não temos como cuidar de ti do jeito que tem sido necessário. As gurias também acham que a senhora não pode mais ficar sozinha. Quando elas chegarem pro jogo a senhora se entende com elas.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Chegaram ao apartamento de Mafalda. Mel a ajudou a se trocar. Um tornozelo ralado pedindo por um bandeide, fez Mel franzir a testa.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Ah Melissa, foi só um raladinho. Isso logo passa. Segunda gaveta da cômoda.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Mel abriu a gaveta e pegou o kit de primeiros socorros. Colocou o curativo e repetiu enfaticamente:</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Vamos procurar alguém de confiança para te ajudar. As cuidadoras existem exatamente pra isso.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Mafalda fez uma cara de “desisto por hora pra evitar discussão” e olhou pra janela pra “contemplar o nada”. Melissa foi saindo.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– São vinte pras sete, as gurias devem estar chegando. Se não quiser descer hoje, não precisa. Fica em casa e descansa.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Mafalda não respondeu. Estava levemente irritada. Detestava quando tentavam coordenar a vida dela.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Onde Melissa via uma proteção, Mafalda via uma prisão.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">E ela não desceu mesmo. Mas isso não impediu as gurias de subirem. Após alguns minutos de leve discussão, Mafalda concordou com elas e aceitou contratar uma cuidadora.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Então eu coloco um anúncio no jornal e vejo quem liga.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Não dona Mafalda! Não acho prudente. Anunciar uma idosa sozinha não é nada sábio. Pode expor a senhora a um delinquente. Vamos procurar uma agência. Lá as pessoas precisam comprovar referências.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Que exagero Lívia! Vocês desconfiam de tudo. Os classificados sempre funcionaram. Vamos olhar nos empregados que se oferecem então.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Sim, nos empregados que estão cadastrados na agência. A Diana conhece uma penca de gente que trabalha com seleção de pessoal e várias agências boas.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Tá bom então. Não vou discutir com vocês. Façam como acharem mais adequado. Só tente não me arrumar uma pessoa metida e mandona. Não quero ninguém se metendo na minha autonomia, nem me tratando como coitadinha.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">As gurias riram e se despediram dela.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Na segunda feira, Jéssica foi até uma agência recomendada por Diana para cadastrar a vaga de emprego. Aproximou-se do balcão e disse:</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Quero anunciar uma vaga.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Tira a fichinha verde e aguarda ali que eu já chamo.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Jéssica não gostou da mornidão da atendente, que sequer olhou para ela. Sentou-se.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Um painel eletrônico piscou com letras grandes e vermelhas acompanhado de um som chato e desafinado de brinquedo de 1,99 com a pilha fraca.</div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEixgKyzzQpF-1mo_drYLVrKZyeACzojDNNytRq3ESa3JPwpV6ZMnutSuq1acrMjt7sNyehHr8_Mn6zAR4qBjhBVJAxXcU7gCR9awoBKMIucnfQz_FmwRpKHHwGEJoVqdCK0VEBdUFlCNrDF/s2086/imagem_2021-01-28_213710.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="886" data-original-width="2086" height="136" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEixgKyzzQpF-1mo_drYLVrKZyeACzojDNNytRq3ESa3JPwpV6ZMnutSuq1acrMjt7sNyehHr8_Mn6zAR4qBjhBVJAxXcU7gCR9awoBKMIucnfQz_FmwRpKHHwGEJoVqdCK0VEBdUFlCNrDF/w320-h136/imagem_2021-01-28_213710.png" width="320" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Fala sério! Recém!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Sua ficha era 162. Uma senhora que estava ao lado dela comentou.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Sempre demora. Pra tudo demora. A minha é o 72. Azul. Tô procurando emprego.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– E quanto falta?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Ela apontou o painel.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="886" data-original-width="2086" height="136" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicRGP-VeFgpnVWI39xFXaztAgI1ey8GvspOt93Z216mxeRdOgiN0gcaceZv3B55aTX_gU8SVTq9wkgxEm5wP5PKy30ujXz0MuOz9PeCGfriuChuVROVDmVpFSPy-__oEmsLQglWpGuMoJC/w320-h136/imagem_2021-01-28_213736.png" width="320" /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– O jeito é esperar. Muito prazer, Jéssica.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Prazer, Vanédia.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– A senhora tá procurando vaga de quê dona Vanédia.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Cuidadora. Trabalho com idosos há 22 anos. Estava cuidando de uma senhora com Alzheimer que faleceu mês passado com 81 anos. Fiquei 5 anos com ela.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Incrível!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Realmente. As pessoas não conseguem mais suportar os idosos hoje em dia.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Não, não é isso. Eu tô procurando uma cuidadora pra uma senhora muito vívida e lúcida de 85 anos, que não pode ficar sozinha porque é muito magrinha e tem osteoporose. Caiu três tombos só esse mês, não se quebrou por milagre. Ela precisa de limites e alguém que seja um pouco mais forte que ela pra compras e serviço básico da casa, tipo cozinhar ou organizar junto com ela. Pro grosso tem a faxineira de 15 em 15 dias.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Ficaram se olhando por alguns segundos. Jéssica estendeu a mão sugerindo que Vanédia entregasse a ficha. Ela sorriu e entregou.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Pode vir comigo conhecê-la?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Posso!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Jéssica soltou as duas fichas no balcão. A atendente perguntou:</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Vai desistir?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– O que acontece quando uma força irresistível encontra um objeto que não pode ser movido?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Hein?!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Tchau!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Vanédia começou a rir.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Ela não entendeu nada!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Meu professor de filosofia dizia que quando alguém quer fugir do debate ou de uma explicação demorada, pergunta um paradoxo para desequilibrar o oponente. Ele dizia que a maioria das pessoas se distrai do que está falando pra se concentrar no paradoxo. Poucas percebem e tentam focar no assunto. E apenas algumas se irritam.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– E como nossa amiga ali não tava num debate, simplesmente te achou uma maluca que surtou de esperar e deve ter ignorado tua pergunta.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Que era o que eu queria. Sair sem dar explicação. Eu ia só largar e sair. Mas ela perguntou aquele “vai desistir” com tanto desdém, que me fazer de louca era melhor que me irritar com ela.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Eu teria dito “dessa agência, sim”, e saído. Mas confesso que tua atitude foi bem mais divertida.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Entraram no carro de Jéssica e foram encontrar Mafalda. Durante o trajeto, a cuidadora fez diversas perguntas sobre sua possível nova cliente e a amiga respondeu tudo de forma a convencê-la a aceitar a missão.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Ao chegarem ao apartamento e serem devidamente apresentadas, a primeira coisa que Mafalda fez foi pedir referências.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Vanédia tirou uma pastinha de dentro da bolsa e entregou para Mafalda. Era um diário que servia como uma espécie de portfólio. Tinha memórias com anotações dela e dedicatórias das famílias atendidas com informações de contato. Mafalda apontou uma foto.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Trabalhou com eles?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Vanédia sorriu assentindo com a cabeça.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Topa uma experiência de 15 dias? Se nos acertarmos, vamos direto pra carteira sem rodeios.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Quando começo?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Agora?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Vanédia deu de ombros e perguntou onde poderia guardar suas coisas. Mafalda agradeceu, dispensou Jéssica e levou Vanédia para o quarto de hóspedes.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Começaram a conversar sobre várias coisas. Vanédia, com sua experiência, estava tentando ao máximo não invadir a privacidade de Mafalda. Entre elogios à decoração, risadas por terem lido muitos dos mesmos livros chegaram à sala, onde fotos de família cobriam um piano. Vanédia estranhou o fato de terem fotos sobre a tampa do teclado.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Ninguém toca?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Não mais. – Disse Mafalda sorrindo. – Meu marido tocava. Ele faleceu com 63 anos de ELA. Os tratamentos não eram nada eficientes naquela época. Ele foi perdendo a capacidade de tocar. Sofreu muito. Eu cantava pra ele.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Como ele se chamava dona Mafalda?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Nicolau.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– É ele aqui?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Sim. Essa foto é de 1946, quando casamos no civil. Nunca casamos no religioso. Ele veio pro Brasil fugindo dos nazistas e foi morar no interior. Ele começou a me ensinar alemão para que eu entendesse as conversas caso algum simpatizante do Eixo estivesse se escondendo por essas bandas.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Vocês tinham que denunciar pro governo né?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Sim. Mas meu pai achou que ele era um nazista disfarçado tentando me perverter. Fugimos juntos. A família dele ficou tão furiosa quanto a minha.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Conseguiram se reconciliar?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Mafalda fez uma pausa profunda. Vanédia quase se arrependeu de ter perguntado.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– A família do Nicolau foi mais fácil. Quando casamos e comunicamos que estávamos vivendo “uma vida digna”, eles se reaproximaram aos poucos, convivendo normalmente conosco depois de uns quatro anos de aproximação. Meu pai morreu no mesmo ano que fugimos. Minha mãe só aceitou me receber quando soube que ia morrer, mas minha irmã Marina e minha sobrinha Érica vinham muito aqui. O Nicolau ensinou piano pra Érica.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– E onde ela mora agora?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Ela morreu.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Desculpe. Não queria fazer a senhora se sentir mal.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Capaz, não te preocupa. Todos aí nessas fotos estão mortos. Sou a única que sobrou. E minhas amigas não querem que eu vá fazer companhia pra eles tão cedo, então, decidiram te contratar!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– A senhora parece ser bem forte, digo, emocionalmente. E tem um bom senso de humor também.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Eu tento. Mas o piano realmente me faz falta, se tu quer saber. Tenho saudade de ouvir o meu velho tocando Adon Olam. Depois que ele se foi nunca mais tive um Seder decente. Ele era judeu. Me ensinou todas as festas. Comemorávamos em casa. Nunca fomos à sinagoga. Bem no fundo ele questionava muitas coisas.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– A senhora ainda canta?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Muito de vez em quando. Já não tenho o mesmo fôlego. Gosta de biscoitos Vanédia? Isso eu ainda consigo fazer. Os melhores amanteigados do condomínio! Não digo do bairro porque tem uma padaria na rua de trás que faz uns muito bons e muito parecidos. Acho que roubaram minha receita.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Minutos depois, enquanto saboreavam os amanteigados, Mafalda falou.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Acho que a Érica morreu grávida.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Vanédia ficou séria aguardando mais informações.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– E minha intuição me diz que talvez o nenê tenha sobrevivido.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Mas a senhora tem alguma pista sobre isso?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Tenho. A Érica tava namorando muito firme um rapazote que era todo derretido por ela. Aí ela engravidou e eles sumiram. Ela morreu e quase foi enterrada como indigente, pois o guri sumiu com as coisas dela. Eu só soube por que puseram uma foto no jornal. Quando perguntei do nenê no IML me enrolaram como se não quisessem que eu soubesse. Acho que devem ter vendido a criança.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Credo dona Mafalda.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Vender pra adoção é bem comum, fura a burocracia. Por isso acho que o nenê viveu. Deve ser adolescente hoje.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– A senhora nunca mais viu o rapaz? Como ele era?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Era bonito. E muito bocó. Mas não um bocó ruim. Era simplório, sem malícia. Eu dizia pra Érica que ele era o príncipe encantado que toda a donzela queria, só que completamente covarde.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– A senhora não lembra o nome dele?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Bem que eu gostaria! Já tentei, fiz até hipnose. Mas a cachola da véia não é mais a mesma. Tudo que o doutor conseguiu com a hipnose foi uma edição exclusiva das minhas receitas.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Vanédia riu e prosseguiu com a conversa falando nas receitas. Mafalda serviu chá e o primeiro dia foi terminando.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Aquele dia virou mês. Vanédia passou pela avaliação sem nem perceber. O mês virou ano. Anos.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Elas continuam amigas até hoje.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">E todos os dias, precisamente às 18:00, tomam chá ou café. Sempre com amanteigados.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s928/Prancheta+11.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="500" data-original-width="928" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s16000/Prancheta+11.jpg" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><h3 style="clear: both; text-align: justify;">© Elos Surreais<br />Todos os direitos reservados.</h3></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>
Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7181039561815683229.post-18593803340707100442014-08-28T19:17:00.003-03:002021-01-28T22:58:08.588-03:00Um Piá Chamado Rosário<div><div>Publicado em Agosto de 2014, este conto se conecta aos contos Poapykua, Querido Diário, Pega! e ao livro 23:33:43, e narra o surgimento de um dos principais vilões desse universo ficcional.</div></div><div><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiH4OP9RRqkN5V4YORf2Gbmv1j2bhqFRyg6CJgIuge9rciYb1biYENHsgtO9I6CEXcHHpFhxZsdrUfBIq6cTpBOeuzwyE_dHQU7ePxnodMgS8bInQsDJXuFWLKWA-mpDmNOfK9nS3Tm7yBR/s2048/6.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1283" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiH4OP9RRqkN5V4YORf2Gbmv1j2bhqFRyg6CJgIuge9rciYb1biYENHsgtO9I6CEXcHHpFhxZsdrUfBIq6cTpBOeuzwyE_dHQU7ePxnodMgS8bInQsDJXuFWLKWA-mpDmNOfK9nS3Tm7yBR/w250-h400/6.png" width="250" /></a></div><br /><div><br /></div><div><br /></div><h1 style="text-align: left;"><div style="text-align: center;">Um Piá Chamado Rosário</div><div style="text-align: center;"><span style="font-size: large;">Uma História Angustiante</span></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Juliano G. Leal</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Feliz, 2014</div></h1><div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Dedicatória</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Tu, que espera cada conto com uma ansiedade saudável e curte cada publicação com interesse genuíno; é pra ti que dedico esse conto!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><h1 style="text-align: left;"><div style="text-align: center;"><div><span style="font-size: large;"><br /></span></div><div><span style="font-size: medium;"><a href="https://linktr.ee/sapientiaservicosdetexto" target="_blank">Revisão: Daniele Leal D’Amico</a></span></div><div><br /></div></div></h1></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><h2 style="text-align: justify;">Um Piá Chamado Rosário</h2><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O dia tinha amanhecido nublado e não parecia haver perspectiva de sol por um bom tempo. Cenário apropriado para nos deixar meio deprimidos; com a sensação de que tudo lá fora está carrancudo. Aquele inverno parecia estar sendo mais chuvoso que os outros. A lama e a ausência de folhas nas árvores colaboravam com a vontade de não por o pé pra fora.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">E, justo nessas condições, chegou a hora de Liurevana dar à luz ao seu bebê. O segundo. Ela não queria a criança. Abortar não era uma opção. Ela tinha muito medo do inferno e ouviu o padre falar inúmeras vezes que aborto era um pecado terrível.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mas seria praticamente suicídio ter que criar duas crianças nas condições que ela vivia. Ou morria, se formos bem realistas. O filho mais velho, 10 anos, estava subnutrido. Na verdade já era quase um zumbizinho, pobre criança. Ela, mais magra que piolho em peruca, mal se mexia pela casa. O filho na barriga lhe consumia toda a energia que conseguia obter com um arroz quirera mirrado e empaçocado. Não possuía panelas. Nem fogão. Sua cozinha se resumia a umas latas sobre um braseiro num canto da casa feita de palha e rebocada com esterco. Era longe de tudo. O sinal de civilização mais próximo era a igrejinha da vila. E ficava distante uns 4 quilômetros.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Guri, vai chamá a véia Zuza que teu irmão tá nascendo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O piá saiu correndo porta afora e se cascou a bater com as duas mãos na casinha da parteira.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Véia Zuza, véia Zuza, o nenê tá vindo, vem ajudá a mãe! Ligeiro!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Ô guri, para c’o fiasco! A véia num tá. Foi acudi uma grã-fina que veio buscá ela de manhã e num vortô aína.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Então vem a senhora mesmo. A mãe precisa de ajuda!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Num posso! Num guento sangue. Vô acendê uma vela pra nos’Sinhora do bom parto e rezá pela tua mãe.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">E bateu a porta na cara dele. Chorando de frustração por ter que voltar pra casa sem ajuda, ele entra como um tufão na palhoça. Sujo de barro até o pescoço, com a cara toda ranhenta, ele desaba de joelhos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Desculpa mãe, a véia não tá em casa. Eu juro que falei direito como a senhora pediu. Pedi pra Nêga vim, mas ela tem medo de sangue.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Shh, calma pitoco. A véia é muito conhecida, as pessoa querem ela. Vamo tê que se virá por nós. Vai ali, pega uns pano limpo daquela caixa nos pé da cama.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ele pegou. Aquela pobre mãe jamais imaginou que seu pequeno primogênito se tornaria seu parteiro. Instruiu o guri passo a passo. Ele firmou com todo o carinho a cabeça do irmão, protegendo-a para que não batesse no chão. Puxou com toda a força quando a mãe mandou, caindo pra trás com o esforço, ficando com seu maninho sobre seu peito. A mãe pegou o recém-nascido e cortou o cordão.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– O nome dele vai ser Rosário.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Limpou, e tentou amamentar. Esgueirou-se até a cama e deitou. Os meninos aninhados em seu colo. Faminta, fraca e debilitada pelo esforço do parto, sucumbiu ao sono. Os pequenos também.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Algumas horas depois, Corolário acordou sentindo algo morno e pegajoso em suas costas. Era sangue. Ele entrou em pânico e começou a gritar sacudindo a mãe e dando pequenas palmadinhas em seu ombro. Não houve reação. Ela estava imóvel. Rosário começou a chorar.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Vana! Cheguei misifia! Tô ouvindo os choro. Teve uma boa hora?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Era a véia Zuza, vindo checar como estavam as coisas. Abriu a porta do barraco e quase desmaiou.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Valha-me a Virge! Vana! Que foi que te deu mulher! Alivanta!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A visão da mãe ensanguentada e dos filhos sozinhos naquela penumbra vespertina somada a um cheiro muito característico que começava a tomar conta do ambiente, despertaram em Zuza o pior dos presságios. A velha enterrou os dois dedos rechonchudos na lateral da garganta dela. Se benzeu três vezes, virou para Corolário e disse.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Guri, tu vai tê que sê forte. Deus resolveu te testá. Consegue segurá teu mano?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sem entender a profundidade da frase de Zuza, crendo que a força era pra segurar o irmão, ele respondeu.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Fui eu que puxei ele de dentro da mãe. Sou forte!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Zuza sorriu com os olhos marejados e pôs Rosário nos braços dele.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Abraça o mano bem quentinho e vai lá pra minha casa. Eu vou cuidá da mãe e depois vô lá.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ele saiu caminhando rápido, com a trouxinha de pano agarrada ao peito como se fosse seu bem mais precioso. Não era?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Uma semana depois os médicos da cidade tinham o resultado da necropsia. A placenta não saiu. Estava grudada nos outros órgãos e músculos. E a hemorragia que Liurevana teve durante o sono foi fatal. Ela não sobreviveria naquelas condições de jeito algum.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ninguém conseguiu contatar parentes. Os meninos foram encaminhados para um orfanato. Quando tinha 13 anos, Corolário foi adotado por uma família muito rica e reservada, e foi morar na Serra Gaúcha.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Rosário viveu no orfanato até os 9 anos. Era uma criança tranquila. Nunca deu problema aos professores e cuidadores. Fazia amigos com relativa facilidade, era alegre, colaborava nas tarefas e falava com frequência que sua casa era o orfanato e que não queria ser adotado.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Numa tarde de verão como outra qualquer, Rosário recebeu uma visita. Um homem jovem e bem arrumado o convidou para conhecer uma comunidade alternativa. Um lugar onde as pessoas compartilhavam seus bens, cultivavam seus próprios alimentos e viviam de forma natural e livre. Ele não fazia a mínima ideia do que era aquilo, muito menos tinha entendido a necessidade de algo assim. Mas por algum motivo oculto, ele aceitou ir conhecer o lugar. E por lá ficou.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Apesar de ter se entrosado rapidamente à rotina do local, algo estranho tinha começado a acontecer com ele. Dia após dia, se sentia mais irado e, algumas vezes, chegou a ter acessos de raiva. Mas era socorrido quase sempre pelo líder do local. O líder era um guru que pregava uma doutrina muito rígida de controle dos impulsos físicos e emocionais. Fazia seus seguidores praticarem longos períodos de jejum e as roupas eram completamente desprovidas de qualquer enfeite ou cor. Frases como “abnegação e modéstia”, “altruísmo e decoro” ou “silêncio e trabalho” eram vistas espalhadas pelo lugar, esculpidas em grandes tábuas de madeira suspensas entre as árvores.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Todo esse esforço durava exatamente um ano. Pois, durante um dia inteiro, com suas 24 horas cronometradas no primeiro dia do verão, todas as proibições eram suspensas e as pessoas se entregavam à permissividade e praticavam tudo aquilo que foram limitadas ou proibidas de fazer no resto do ano. As únicas regras que permaneciam eram: não fazer nada sem o consentimento do outro e não fazer nenhuma ameaça à vida, saúde ou integridade física de quem quer que fosse.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Esse dia, chamado de Ahno-Grev, irritava muito o senso de obediência de Rosário. Na opinião dele, se as regras existiam, elas deveriam ser seguidas à risca e sempre. Exceções eram um atestado de fraqueza.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No terceiro ano de sua estadia naquele grupo, a fúria de Rosário com “o dia ridículo” (como ele gostava de chamar) estava chegando ao topo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ele percebeu que as únicas regras que não poderiam ser quebradas eram as que davam segurança para que as pessoas quebrassem todas as outras. Pensando consigo mesmo, decidiu:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Neste ano eu vou quebrar essas duas regras. Ou se obedece todas, ou nenhuma. Não há espaço para exceções.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Talvez parecesse uma atitude radical e prematura demais para uma criança de doze anos. Não para ele. De fato ele não sabia muitas coisas além das aprendidas na escola. Sua experiência de vida se resumia ao contexto do confinamento. E talvez fosse justamente isso que o fizesse ter uma gana tão avassaladora ao seguir regras.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Faltando uma semana para o dia ridículo, Rosário teve um sonho. Uma linda mulher apareceu diante dele. Seu vestido estava sujo de sangue. Suas mãos pareciam trêmulas e fracas. Ela lhe disse:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Filho, eles me feriram, me magoaram e destruíram. Acabe com eles!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Quando acordou, levou um tremendo susto. Havia algo gelado na cama, sob suas cobertas. Ele moveu-se cuidadosamente e agarrou o objeto. Uma metralhadora. Deu um grito de espanto, as luzes acenderam e ele acordou de novo. Dessa vez, de fato. Tinha feito xixi na cama. Muito envergonhado, foi tomar um banho, fazendo de tudo para não acordar mais ninguém. Depois, trocou seus lençóis e colchão, e voltou a dormir.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O dia estava chegando. Na véspera, enquanto todos se preparavam e iam inclusive dormir mais cedo pra aproveitar o “feriado”, ele foi até o depósito e saiu com um galão de gasolina. Passeou tranquilamente deixando aquele líquido se espalhar por todas as construções da comunidade. Vendo que ninguém aparecia e que seus movimentos foram discretos o suficiente para não chamarem a atenção, foi até seu dormitório, arrumou a mochila e voltou ao depósito.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Abriu e emborcou num carrinho de mão todos os galões e latas de inflamáveis que conseguiria carregar, e aproveitando um furinho providencial do carrinho, circulou novamente por toda a propriedade. Antes que o cheiro entrasse pelas janelas e denunciasse seu empreendimento, riscou um fósforo, pegou sua bicicleta e saiu. Enquanto se afastava, um clarão alaranjado piscava atrás das árvores e ele pode ouvir alguns gritos de desespero. Mas não sentiu uma gota de arrependimento.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ao se distanciar alguns quilômetros do local, parou em uma quitanda de beira de estrada que estava aberta.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Tá vindo donde guri?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Da vila dos malucos. – Ele sabia que era assim que o lugar era conhecido nos arredores.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Tá de brincadeira!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Não. Tô com fome.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Gosta de quê? Pega aí.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ele pegou uma manga e segurou diante do peito olhando para o quitandeiro com as sobrancelhas erguidas. O rapaz lhe estendeu uma faca e apontou o lado oposto da barraquinha, onde Rosário pode ver uma torneira.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Enquanto o menino devorava a fruta, seu benfeitor refletia, o dedo deslizando para cima e para baixo sobre um interruptor. Era uma campainha que avisava à casa mais próxima que ele estava em perigo ou que havia uma emergência, para que, assim, os vizinhos trouxessem ajuda.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Decidiu não apertar. Esperou. Rosário estava lambendo os dedos e voltando à torneira quando um Fleetmaster preto encostou. Um homem alto, vestindo fraque e com cara de poucos amigos desceu do carro. Abriu a porta traseira do carro, mas ninguém saiu. Lá de dentro, alguém falou:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Rosário, eu vim te buscar. Fizeste um excelente trabalho.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Quem tá aí? Quem é tu e como sabe o meu nome?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O dedo do quitandeiro correu para a campainha, mas o motorista simplesmente ergueu a mão com longos dedos magros espalmados, fazendo a luva branca subir no escuro como uma imensa e ameaçadora placa de proibido.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Não precisa ter medo, Rosário. Conheço você melhor do que você mesmo. E você também me conhece, apenas não lembra.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Rosário se aproximou do carro e o homem se moveu permitindo que a luz mostrasse seu rosto.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Tens ainda o medalhão que eu te dei?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Tenho.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Hum, muito bom. Foi o medalhão que te deu coragem, criatividade e me mostrou onde te achar.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ele franziu a testa, olhou para o motorista, para o quitandeiro, para o chão, para o céu...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Venha comigo. Eu tenho as ferramentas para que tu desenvolvas teu potencial. Tu terás acesso a coisas que jamais imaginaste, só tem uma condição.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Rosário olhou por entre as sobrancelhas sem erguer a cabeça.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Vais ter que cumprir rigorosamente as regras.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ele sorriu e deu um passo em direção ao carro, mas o motorista o segurou pelo ombro e estendeu uma nota de vinte cruzeiros.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Paga o moço. – Disse o motorista.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Não precisa. Ele me deu a manga.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Então pegue mais algumas frutas que possamos comer sem fazer muita sujeira. A viagem é longa. – Retrucou a voz que vinha do carro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ele foi. Pegou três maçãs e meio cacho de bananas. Ergueu as frutas e perguntou.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Pode ser?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O motorista apertou levemente os olhos numa expressão que poderia ser interpretada como uma tentativa de sorriso. Ele pagou o quitandeiro e entrou no carro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Manobraram para voltar na mesma direção que tinham vindo. Enquanto o quitandeiro observava a luz dos faróis minguarem e sumirem à distância, vários faróis e sinalizadores coloridos se aproximavam.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O rapaz ficou intrigado ao ver passarem dois carros dos bombeiros e uma viatura da polícia em alta velocidade na pequena estrada. Ele descobriria o motivo daquilo no dia seguinte, quando a vizinhança toda comentaria o incêndio sem sobreviventes na vila dos malucos. Ele se lembraria do menino. E se culparia por não anotar a placa do carro que o levou.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Me fala mais sobre o medalhão.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Antes acho que tu devias saber que sempre te cuidamos, mesmo de longe. Não te buscamos antes, pois acreditávamos que deverias passar pelas situações que enfrentaste para que descobrisses tua verdadeira vocação.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– “Nós” seria quem?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Somos pessoas que trabalham para que o mundo se torne um lugar mais limpo. Que eliminam pessoas com ideias retrógradas e obtusas que prejudicam a evolução da raça humana. Há muitos anos, um nobre peregrino recebeu a missão de canalizar forças anteriormente desconhecidas para atingirmos esse fim.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Que forças?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Há milênios, a raça humana abusou de seu livre arbítrio para quebrar regras espirituais eternas. Um casal de anjos se uniu e veio à Terra punir os humanos por essa desobediência. Numa reviravolta sem precedentes, o Criador protegeu os humanos e puniu os anjos que quiseram fazer justiça.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Mas o Criador deu a ordem para que eles viessem?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O homem semicerrou os olhos e respondeu controlando ao máximo seu tom de voz.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Diga-me, Rosário, alguém precisa repetir para ti todos os dias a ordem de lavar as mãos para ir à mesa ou tu sabes que isso é o correto a se fazer e simplesmente o fazes?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Eu só faço.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Então compreendes os anjos. Eles não necessitavam de ordem expressa para uma regra que já era conhecida e praticada. Mas, não contente em defender aqueles humanos pecadores, o Criador também quis que os dois anjos servissem de exemplo. Ele os aprisionou nas profundezas, permitindo que saíssem apenas uma vez ao dia cada um. E por apenas três horas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Fiquei com uma dúvida.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– E qual seria?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– O Criador simplesmente castigou assim direto, sem explicar o motivo?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O homem nitidamente controlou suas reações e respondeu entredentes tentando soar gentil.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– É assim que Ele é. Ele impõe o que quiser simplesmente porque pode fazer isso. Ele abusa do poder que tem e protege os humanos, pois são mais fracos que os anjos. Mas isso foi bom. O peregrino de que falei no início descobriu, sem querer, o “pátio da prisão”, o lugar onde os dois anjos apareciam três horas por dia cada um.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– O que impedia os anjos de fugirem?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Guardas. Não havia realmente nenhum no local, mas os anjos presos sabiam que, se desobedecessem, seriam caçados e facilmente capturados. Isso se o Criador não os matasse imediatamente após a fuga. Mas isso permitiu que nosso peregrino se aproximasse do anjo do dia. Sim, pois ele só podia sair das onze da manhã até uma da tarde. E sua amada, das onze da noite à uma da madrugada.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Pra que eles nunca mais se vissem, mesmo estando perto! Que cruel!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– É verdade, Rosário. Só que o peregrino passou a noite naquele local. Quando o anjo da noite o avistou, procurou matá-lo. Mas ele mencionou que sabia a história e havia descoberto onde o anjo do dia estava. Ela então decidiu poupar a vida do peregrino para saber a resposta e amaldiçoou os céus ao descobrir que estava ali bem perto. Foi a primeira vez que ela se voltou contra o Criador. Sua aparência mudou e ela se transformou em um demônio.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Que horror! Não sei se quero ouvir o resto.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Calma, Rosário. As coisas não são como tu achas que são. Ouve até o final. O peregrino se assustou, mas esperou. Ela disse que estava livre. Livre para atormentar os humanos fiéis ao Criador, limitados e presos em seus rituais estúpidos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– E o anjo do dia?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Ela não podia entrar na prisão, então esperou até o dia seguinte. Não precisou fazer nada. Quando ele saiu, e viu a aparência cinza e decaída de sua amada, julgou que o Criador tivesse feito aquilo com ela e também amaldiçoou os céus.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– E também virou demônio!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Não. Ela não entendeu e decidiu contar o que realmente acontecera. Ele, então, percebeu que não seria demonizado por algo que não era verdade. Em seguida, ele revelou um conhecimento antigo dos humanos para o peregrino, algo que era proibido. E a transformação aconteceu.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– E o que houve com eles depois?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Eles ensinaram tudo que sabiam sobre poder e magia para o peregrino. Ensinaram a ele tudo aquilo que o Criador os impediu de punir. As cavernas onde estavam presos eram jazidas de ônix. O peregrino enriqueceu e recrutou um grupo de pessoas para aprender os segredos e mistérios daqueles anjos. Ele criou, assim, uma ordem secreta. Uma ordem que precisa de pessoas destemidas e que gostem de seguir regras. Pessoas como eu e teu irmão mais velho, Corolário, que já está conosco há dez anos. E será teu instrutor.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Estavam chegando a uma enorme mansão. Um jovem muito elegante veio em direção ao veículo. Rosário ficou imóvel aguardando uma ordem, afinal, aquela história sobre seguir regras tinha bagunçado sua mente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Desce. Vai conhecer teu irmão.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Esse aí é meu irmão?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Sim, Rosário. Ele preparou tudo pra te receber. Vai te mostrar cada canto da casa e te ajudar a entender o legado dos nossos antepassados.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O menino saiu do carro, deslumbrado com tamanho luxo e elegância. Os serviçais da casa faziam mesuras com a cabeça baixa enquanto ele passava.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">No saguão principal, uma enorme escultura mostrava um casal abraçado, ela com um vestido cheio de luas e estrelas, ele com um manto cheio de sóis e nuvens.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Sar já te falou sobre eles, não é?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Sar?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– O distinto cavalheiro que te trouxe.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Ele não tinha dito o nome dele.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Acontece com certa frequência. Com o tempo tu vais entender por que. Por hora, te basta saber que ele é descendente direto do peregrino.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Uau. E para onde estamos...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Indo para o teu quarto. Tu precisas saber que, quando chegamos aqui, recebemos nomes novos. Ninguém aqui me chama de Corolário. Meu nome aqui se tornou Ranak. Durante o treinamento, tu descobrirás o significado dele.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– E eu, qual vai ser meu nome?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O medalhão parecia ter aquecido seu peito. Seus olhos reviraram e Ranak sorriu. Quando voltou a si, estava em sua cama, seu irmão sentado ao lado numa poltrona, lendo um livro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Dormiu bem, Rosário?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ele sentou-se na cama, olhou diretamente para os olhos do irmão e, com um sorriso assustador nos lábios, respondeu.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Rosário está morto. Pode me chamar de Thäno.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">______________________________________________________________</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><h3 style="text-align: justify;">© Elos Surreais<br />Todos os direitos reservados.</h3></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s928/Prancheta+11.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="500" data-original-width="928" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s16000/Prancheta+11.jpg" /></a></div><br /><div><br /></div><div></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7181039561815683229.post-36456301387899106032014-02-09T23:36:00.006-02:002021-01-28T22:58:29.237-03:00Poapykua - Relíquias Malditas<span style="font-family: inherit;">Publicado em Fevereiro de 2014, este conto explica a origem do oratório de Olavo, objeto sinistro que aparece no conto "Querido Diário", no <a href="https://www.elossurreais.ga/p/surreal.html">Surreal</a>.</span><div><span style="font-family: inherit;"><br /></span></div><div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjrl5CkPknDSaEQbM0whQ5MBFzEKGx-DSzN7As5o79_SUM4S_7Oj251dmcD1e8YCrH6F3QdATx9QAdcG4GM5-wD2o6OAOPQ7mtgj7FCpo8971rEO2WwfQ3ppEuBgGt_cjsZWLlKzs-4o3aI/s2048/1_1.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="poapykua" border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1283" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjrl5CkPknDSaEQbM0whQ5MBFzEKGx-DSzN7As5o79_SUM4S_7Oj251dmcD1e8YCrH6F3QdATx9QAdcG4GM5-wD2o6OAOPQ7mtgj7FCpo8971rEO2WwfQ3ppEuBgGt_cjsZWLlKzs-4o3aI/w250-h400/1_1.png" title="Poapykua - Relíquias Malditas" width="250" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><h1 style="clear: both; text-align: justify;"><div style="text-align: center;">Juliano G. Leal</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Poapykua</div><div style="text-align: center;">Relíquias Malditas</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Feliz, 2014</div></h1><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">Este conto é dedicado a todos aqueles que ficaram curiosos com o destino de certos objetos mencionados no conto “Querido Diário” no livro Surreal. E também aos que ficaram curiosos quanto às origens destes intrigantes objetos, que estavam prestes a serem destruídos...</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><h4 style="clear: both; text-align: justify;">Poapykua</h4><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Ai meu Deus! Vô corre aqui!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Mirella estava pálida com os olhos arregalados, fitos em uma fotografia estampada na página policial do Correio do Povo.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Seu Donato se aproximou para ver o que tinha assustado tanto a neta e leu o seguinte:</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Morte misteriosa intriga os moradores da Cidade Baixa</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">A reportagem falava sobre a morte bizarra e ainda não explicada de um jovem de 16 anos. A família não entrou em detalhes sobre o ocorrido. A polícia declarou que “com base no que vimos na cena do crime, foi apenas um trágico acidente”, mas que as investigações prosseguiriam.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– É aquele piá que comprou o oratório aqui, né vô?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Eu avisei que aquele negócio não era boa coisa. Só falta virem aqui fazer perguntas.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Acho que não. Acho que só a gente vai conectar a morte dele com o oratório. O senhor não acha que deveríamos avisar a família?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Talvez. Mas depois que a poeira baixar um pouco. Já temos problemas suficientes pra resolver agora que minhas suspeitas se confirmaram.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Preciso confessar uma coisa e me desculpar com o senhor.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– É mesmo?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– É vô. Até agora eu achava que o senhor tava exagerando. Sabe, meio paranoico e supersticioso demais.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Minha desconfiança tinha motivo, filhota. Me diz, que tipo de pessoa se desfaz dum monte de objetos antigos e atopetados de prata em troca de um mero sininho de vento? Aquela véia tava era se livrando desses badulaques!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Eu dei uma pesquisada neles. – Disse Mirella fechando o jornal. – Tinha um livro velho com umas anotações e uns nomes...</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Descobriu algo interessante?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Sim. As coisas foram feitas por um marquês falido no fim da monarquia. Diz a lenda que ele usou todo o dinheiro que lhe restava para criar a coleção de objetos. Ele pediu que um feiticeiro amaldiçoasse a madeira e a prata usada neles, pois daria de presente àqueles que causaram sua decadência.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Viu, eu sabia que dali não vinha coisa boa...</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Dizem que o feiticeiro misturou o pó da madeira moída de uma árvore maldita, na cola que o escultor usou. E parte da prata, foi derretida de armas usadas em batalha.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Bom, falta pouco tempo pra eu destruir aquilo tudo. Aí terminamos com essa história e ninguém mais se machuca.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Tem um probleminha aí vô.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Ah, eu sabia! Sempre tem...</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Quantos objetos o senhor pegou com aquela senhora?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– O oratório do piá, a caixinha de música, o realejo, o espelho, o atril, a espada, o broche de camafeu e os braceletes. Oito?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Falta um então. Aqui no site diz que foram feitos 9 objetos. Falta um anel.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Deve ter ficado com ela. Pra ter todos os objetos ela deveria ser fã desse marquês.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Talvez fosse mais do que fã. Aqui diz que ele fez as peças, mas nunca deu aos inimigos. Elas ficaram guardadas com a família pra sempre.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Então ela era descendente dele. Tu falou da madeira e da prata. Eles não falam nada do ônix aí?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Não vi nada ainda. Vô, isso deve valer uma fortuna. Tanto pelo valor histórico, quanto pelo valor real. Uma barrinha de prata é quase 600 pila, e como o senhor mesmo falou, tá repleto de prata aí. Os ornamentos devem ter sido feitos à mão. São peças do período imperial, e os enfeites de ônix valorizam muito o conjunto. O senhor já vendeu o oratório. Devia vender o resto.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Pra mais gente acabar que nem esse guri? Acho que não...</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Então deixa eu olhar melhor as peças. Deixa eu pesquisar mais. E se eu achasse um jeito de quebrar a maldição?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Pode ser. Mas só até o final da semana. Depois disso, essas coisas vão embora, não me importa o quanto sejam valiosas. Minha vida vale mais que um punhado de prata. Vou ali no Gambrinus pegar uns bolinhos e já volto...</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Mirella foi para o escritoriozinho que ficava apertado entre uma parede e uma estante e começou a examinar os objetos com mais atenção.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">O broche tinha esculpido nele o rosto de uma mulher muito bela, mas com uma expressão fria e ameaçadora. Usava uma trança muito bem feita pendendo sobre o decote. Mirella podia jurar que a extremidade do cabelo foi esculpida propositalmente para se assemelhar a um ferrão de escorpião.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Também percebeu letras minúsculas gravadas em alguns detalhes de prata, e dentro dos braceletes palavras estranhas:</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><h3 style="clear: both; text-align: center;">Poapykua Juka</h3><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Poapíqüa júca? Poapiqüá Jucá? Como será que se diz esse troço?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Jogou no Google. Nenhum resultado encontrado. Virou o site da lenda de cabeça pra baixo atrás de mais detalhes. Nada. Decidiu contatar a pessoa que fez o site. Foi quando se deu conta que a última atualização fora há 4 anos e não havia nenhum “fale conosco”.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Copiou a frase num papel e foi até um antiquário na Marechal Floriano, onde um amigo, Túlio, trabalhava.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Desculpa Mirella, nunca vi isso em nada. Mas o som parece indígena. Vou ligar pra um amigo meu, o Abel, que é caingangue e ver se ele consegue nos dar uma ideia.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Onde tu viu isso? – perguntou Abel.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Uma amiga achou isso entalhado num bracelete.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Não é boa coisa. Não sou especialista, sei uma ou outra coisa de ouvir os idosos conversando e isso aí deve ser guarani. Se eu não estiver errado esse “juka” tem a ver com morte! O resto eu não sei dizer...</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Valeu cara!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– De nada! Mas na boa, larguem esses troços de mão...</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Tá tri. Até!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Tchau.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Mirella suspira e diz:</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Morte é?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Pois é...</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Bom, meu avô deve ter razão. Vou voltar pra loja e largar essa coisa toda. Que faça o que ele quiser. Valeu Túlio!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Aparece aí mais seguido, tá?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Tá bom. Tchau.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Mirella começou a subir a Marechal pra voltar pro Mercado Público. Na esquina da Duque de Caxias um homem correndo feito louco esbarrou nela e a empurrou para o meio da rua.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Uma lotação freou com tudo e parou a três dedos de distância dela. Assustada, recortou as ruas do centro pra evitar atravessar nos cruzamentos complicados e chegou em segurança.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Contou para o avô as coisas que descobrira e que estava desanimando em sua pesquisa. Que a maldição não tinha jeito mesmo.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Perto da hora de fechar a loja, um homem muito bem apessoado se aproximou e disse sem nenhum rodeio:</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Vim livrar vocês do problema.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Que problema? – disse Donato pensando que fosse o eletricista que não tinha vindo desde que ele chamou.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– A coleção do Marquês. – e colocou uma valise sobre o balcão.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Não está a venda.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Eu sou imune a essas maldições. Aqui tem R$ 144.000,00, que seria o valor médio do lance caso essa coisas fossem a leilão fechado. Agora me dê as peças.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Não sei quem o senhor é, e já falei que não estão à venda!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Pois muito bem. Vai ser do jeito difícil então.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">O homem fechou a porta e mostrou discretamente uma arma por baixo da roupa. Mirella pôs as duas mãos na boca de susto e seu Donato desabou na cadeira.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Tu guria, faz a nota.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Ela fez.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Agora vai pegar as coisas. E da próxima vez velho, não mente pra uma criança.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Não foi mentira. A velha comprou no leilão e jogou aqui. Ela sabia da maldição e não nos avisou. O guri morreu antes de eu saber detalhes. Tudo que eu tinha eram pressentimentos. E eu estava certo.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Coloca tudo em cima do realejo. Me dá a nota.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Ele saiu puxando o realejo até o carro estacionado na rua. Mirella saiu atrás dele. Donato ficou decepcionado por não ter destruído os objetos e chorou debruçado no balcão.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Moço, desculpe meu avô. Obrigado por nos livrar disso. Posso perguntar seu nome?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Ele entrou no carro e respondeu:</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Thäno. Talvez um dia voltemos a conversar.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Espera, o que quer dizer a expressão nos braceletes, o senhor sabe?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Não são braceletes. São algemas! Algemas da morte. Pena que você não aprendeu a usá-las...</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Como assim?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Adeus!</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Mirella voltou para a loja. Não conversaram mais sobre aquilo. Passou muito tempo. O dinheiro foi muito bem vindo. Donato se aposentou e Mirella ficou cuidando sozinha da pequena loja. As relíquias do marquês ficaram no passado.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Até que um dia, um menino de rua entrou na loja e disse:</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">– Tia, quer comprar esse anel que eu achei num bueiro, pra eu poder comprar comida?</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">_______________________________________________</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><h3 style="clear: both; text-align: justify;">© Elos Surreais<br />Todos os direitos reservados.</h3></div><br /><span style="font-family: inherit;"><br /></span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEivJZ0na3jAGIMWNLOeKA5ilreDHNARb32fi40iWImlOozwZF4eGtG9w50y8wNp9MvXhm1E11jw-A79tYq_bnH4POgnF8tw7zkkdbonRvhXAndNHt7E6jwvdr0QEp2OGPMq9HAWMCnY8Mn3/s928/Prancheta+11.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="500" data-original-width="928" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEivJZ0na3jAGIMWNLOeKA5ilreDHNARb32fi40iWImlOozwZF4eGtG9w50y8wNp9MvXhm1E11jw-A79tYq_bnH4POgnF8tw7zkkdbonRvhXAndNHt7E6jwvdr0QEp2OGPMq9HAWMCnY8Mn3/s16000/Prancheta+11.jpg" /></a></div><br />Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7181039561815683229.post-85652311259678377512013-12-24T01:29:00.008-02:002021-01-28T22:58:20.011-03:00Gloria In Excelsis Deo<div style="text-align: justify;">Publicado em 24 de Dezembro de 2013, este conto narra uma batalha épica, na qual a Morte e seus Ceifadores recebem ajuda de uma Legião de Anjos Músicos para reverter uma catástrofe, num dos dias mais importantes da História.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgua9jEOzCwRzygIoYMGAooV6JKLhMyh447fbsADSIMR8sjU-QfWmDc9X2nNFVYn8ItHPgZJifbW-9vjFyq1TbKj-oAEPovphl8TvXcJL2IL8W0UuRD0dEzpb_LqPB6c0P743QdVnDAhGwR/s2048/5_1.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1283" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgua9jEOzCwRzygIoYMGAooV6JKLhMyh447fbsADSIMR8sjU-QfWmDc9X2nNFVYn8ItHPgZJifbW-9vjFyq1TbKj-oAEPovphl8TvXcJL2IL8W0UuRD0dEzpb_LqPB6c0P743QdVnDAhGwR/w250-h400/5_1.png" width="250" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><h1 style="text-align: center;">Gloria In Excelsis Deo<br />Ceifadores no Campo</h1><h1 style="text-align: center;"><br /></h1><h1 style="text-align: center;">Um Conto de Natal</h1><h1 style="text-align: center;"><br />Juliano G. Leal</h1><h1 style="text-align: center;"><br /></h1><h1 style="text-align: center;"><br />Feliz, 2013<br /></h1><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div><br /></div><div><i><b>Dedico essa obra a todos aqueles que amam a história do Natal, por amarem Jesus o Messias e o considerarem o maior presente do Eterno para a humanidade.</b></i></div><div><i><b><br /></b></i></div><div><i><b><br /></b></i></div><div><i><b>Há uma batalha acontecendo desde tempos imemoriais pela sua vida. O inimigo conhecido como diabo, quer te afastar do teu Criador. Receba Jesus na sua vida, deixe que ele nasça no seu coração e te dê salvação e vida eterna!</b></i></div><div><i><b><br /></b></i></div><div><i><b>“Porque Deus amou tanto o mundo que deu seu filho unigênito, para que todo o que crê Nele não pereça, mas tenha a vida eterna.” João 3:16</b></i></div><div><br /></div><div><br /></div><div><br /></div><div><br /></div><div><br /></div><h2 style="text-align: justify;">Gloria In Excelsis Deo</h2><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Tu viu a fúria dele? Nunca vi ele desse jeito. Confesso que tô assustado.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– E era pra menos? Olha a bagunça que o outro tá fazendo só por causa de uma estrela no céu. Nosso trabalho triplicou. E tu sabe que o chefe detesta essas interferências na ordem natural das coisas...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os passos rápidos nas pedras das ruas tortuosas de Jerusalém abafavam o murmúrio dos dois colegas de trabalho. Estavam atrasados. Iam para o Hermom.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Tem noção de como é longe pra ir andando?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Como se isso importasse. A gente não cansa. Tá reclamando do quê?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– A gente não vai poder ir do jeito normal nem um pedaço do trajeto?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Vai. Quando eu achar que é seguro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– A estrela, pelo que parece, parou sobre a Terra de Lahmu. O mesmo lugar onde já nasceu outro rei.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Davi, novato. Esse é um dos motivos do tumulto. Existe uma antiga profecia que diz que o Rei dos Reis vai nascer na Cidade de Davi. E também há outra profecia falando de um sinal no céu.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– O que vai acontecer lá no monte? Posso saber? Dá pra me adiantar alguma coisa?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Vamos encontrar os outros. E vamos receber ajuda.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Ajuda? De quem?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Tu vai ver quando a gente chegar lá. Aqui é seguro.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Numa fração de segundo, uma névoa escura e densa os envolveu e eles sumiram dali.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Longe dali, um homem prestes a se tornar pai de família, corre batendo de porta em porta, implorando por um quarto ou cama para sua esposa em trabalho de parto.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mas as vagas na cidade estão esgotadas. Há a possibilidade de se hospedar em uma cabana. Milhares delas estão espalhadas por todos os lados por causa da Grande Festa.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Valha-me o Altíssimo. Uma cabana improvisada não é um bom lugar pra se ter um bebê...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Um idoso que viu o desespero nos olhos do homem, o chamou dizendo:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Meu jovem, admiro sua disposição, mas sua busca é inútil. Venha, meus animais são dóceis e a cabana deles foi limpa pouco antes do pôr-do-sol. Vou acomodar os animais longe de vocês e deixar que usem a parte mais limpa e protegida da cabana.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O homem olhou hesitante para sua esposa, mas ela fazia movimentos verticais repetitivos com a cabeça e os olhos muito arregalados, que o compeliam a aceitar a proposta.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os colegas chegaram ao Hermom. E o novato ficou de queixo caído.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sobre a montanha, os céus abertos eram visíveis apenas para os não-humanos. Um círculo enorme se abria por entre as nuvens e milhares de seres com roupas resplandecentes desciam dali.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Anjos! Vamos receber ajuda dos anjos! Eu não sabia que eles podiam trabalhar com a gente!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– É uma emergência. O chefe pediu ajuda pro Altíssimo. Tá demais. O outro acha que vai conseguir impedir o cumprimento das profecias precipitando mortes.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Tu tem medo de dizer o nome dele?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Bem capaz! Olha bem pra minha cara, novato! Mas que barbaridade! Eu tenho é nojo de falar naquele mequetrefe!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Uma trombeta soou alto e todos se voltaram para olhar. No topo da montanha, um ser magro, de boa aparência, vestindo uma túnica negra muito elegante, com um semblante jovial e tranquilo apesar de seu olhar austero e penetrante, começa a falar:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Muito boa noite. Muito bem vindos. Obrigado por atenderem tão rapidamente meu chamado. E obrigado Altíssimo – disse olhando para o céu – por atender meu pedido.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ouviu-se um rumor na plateia. Um som reverente de concordância. Ele prosseguiu.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Permitam que me apresente àqueles que não me conhecem. Me chamo Morte. Fui criado para administrar os momentos limites da vida da criação. E estes que aqui estão, com suas túnicas semelhantes à minha, são meus ajudantes nessa missão de conservação e equilíbrio.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Um dos anjos deu um passo à frente e tomou a palavra.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Eu sou Hallel. Fui designada para comandar essa missão. Não fomos autorizados a usar nenhuma arma. Vamos combater o inimigo com música. Vocês tem um protocolo. Nós fomos instruídos a afastar as hostes inimigas dos pontos críticos para que vocês retomem a rotina.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Morte retomou a palavra.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– E vocês meus irmãos, foram autorizados a devolver a vida aos que foram injustamente ceifados. Mas essa concessão vale apenas para as próximas horas. Os profetas anunciaram que quando o Rei dos Reis nascesse ele salvaria a humanidade da perdição eterna, perdoando os pecados deles. O inimigo não está tentando evitar o nascimento do Rei, ele está tentando privar as pessoas de serem salvas por ele!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A trombeta tocou novamente. Hallel e suas tropas dispararam em todas as direções, para os quatro cantos do planeta, carregando trombetas, harpas, tambores, guitarras, violões, clavicórdios, saltérios, cítaras, harmônicas, trompetes, violinos, apitos, berimbaus, banjos e todo o tipo de instrumento que se possa imaginar.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os ceifadores desapareciam em suas nuvens espessas para surgir novamente frente a frente das hordas malignas.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Os demônios rugiam e ameaçavam furiosos os ceifadores, mas não podiam nada contra eles. Mas a recíproca era verdadeira. Os ceifadores também eram incapazes de impedí-los.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A dupla de ceifadores de Jerusalém voltou para seu território e começou a trabalhar no exato momento em que viram Hallel chegar acompanhada de um pelotão com uns quinhentos anjos, fazendo um estardalhaço que atordoava os demônios. Uns desmaiavam, outros fugiam. Mas alguns tentaram enfrentá-la...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Ele vai tentar fazer o que eu penso que vai? – Perguntou o novato.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– É insano o suficiente pra isso. Fecha os ouvidos, vai por mim.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O demônio tinha o dobro do tamanho dela e portava duas espadas com a lâmina bifurcada nas pontas. Gritou impropérios e ergueu suas armas mirando o pescoço de Hallel.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ela abriu os braços como se fosse aceitar o golpe sem reagir, mas quando as lâminas estavam prestes a tocar sua pele...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– KADOSH! ADONAI ELOHIM TZEVAOT!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sua voz era ensurdecedora, misturava o grito de uma águia com o rugido de um leão e seu poder fez com que o demônio explodisse em pedaços. Uma das espadas caiu penetrando o solo bem ao lado do novato. A mão do dono ainda segurava o cabo...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Eles podem fazer isso com a gente?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">– Prefiro não saber. Vai! Tem três casas nessa vila que precisam de nós. Corre! Corre! Corre!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A batalha prosseguia. Um anjo enorme rodopiava e tirava sons agudíssimos de uma guitarra. Cada nota fazia cerca de vinte ou trinta demônios despencarem do voo e aterrissarem forçosamente no solo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Um violinista aproveitou o arco para dar uns petelecos nos que quiseram se aproximar demais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Distante dali, próximo a um cemitério, um trombonista soltava sons longos e espaçados trazendo a vida de volta àqueles que tinham sido vítimas nas semanas anteriores.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O planeta fervilhava com uma batalha pelas vidas humanas. Quando de repente se ouviu o som de um Shofar. E após isto silêncio.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">As tropas de Hallel se reuniram sobre a Cidade de Davi, os céus se abriram novamente e ela conduziu sua orquestra e coro rompendo o silêncio:</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">“Glória seja somente a Yahweh nos mais altos céus! E que na Terra haja paz entre os homens!”</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ao longe, pode se ouvir o chorinho de um bebê.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Aquela batalha acabou. E uma nova história começou.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">_____________________________________________________________</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s928/Prancheta+11.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="500" data-original-width="928" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s16000/Prancheta+11.jpg" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><h3 style="text-align: justify;">© Elos Surreais<br />Todos os direitos reservados.</h3>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7181039561815683229.post-91741995687860597802013-02-04T20:56:00.052-02:002021-01-30T23:46:04.106-03:00Recomeço<p style="text-align: left;">Publicado em Fevereiro de 2013, este conto narra a viuvez de um personagem importante dos Elos, sem revelar qual.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEihivv72_VVY8X6G9Xhi0LxKVNTV-GK6gEQ3iYQwvT9bRAFuzIB8tB56fg4mme17K9VZBzr2XnBSruCTZgtNluw2unR7OyIHUW2y4iarj38VfVA3H9TVmEb9nuCuXEauaINuTkkxsTzbQig/s2048/3.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1283" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEihivv72_VVY8X6G9Xhi0LxKVNTV-GK6gEQ3iYQwvT9bRAFuzIB8tB56fg4mme17K9VZBzr2XnBSruCTZgtNluw2unR7OyIHUW2y4iarj38VfVA3H9TVmEb9nuCuXEauaINuTkkxsTzbQig/w250-h400/3.png" width="250" /></a></div><br /><h1 style="text-align: justify;"><div style="text-align: center;">Recomeço</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Juliano G. Leal</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Bento Gonçalves, 2013</div></h1><div style="text-align: justify;"><br /><br /></div><br /><br /><blockquote style="border: none; margin: 0px 0px 0px 40px; padding: 0px; text-align: left;"><div style="text-align: justify;"><b><i>Minha alma continuamente se lembra [da aflição] e se abate dentro de mim.</i></b></div><div style="text-align: justify;"><b><i>Quero trazer à memória o que pode me dar esperança.</i></b></div><div style="text-align: justify;"><b><i>As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se cada manhã. Grande é a tua fidelidade.</i></b></div><div style="text-align: justify;"><b><i><br /></i></b></div><div style="text-align: justify;"><b><i>Lamentações 3:20-23</i></b></div></blockquote><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><div style="text-align: center;"><i>Este conto é dedicado a todas as pessoas que perderam entes queridos em momentos abruptos como desastres, acidentes ou surtos de saúde. Não perca a esperança. Honre aos que se foram vivendo uma vida que os faria sorrir.</i></div><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><h2 style="text-align: justify;">Recomeço</h2><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br />O despertador tocou anunciando uma manhã comum. Ele virou na cama e o espaço ao seu lado estava vazio. Escorregou a mão para cima e para baixo, ainda muito sonolento, sem ter uma verdadeira noção do que estava acontecendo.<br /><br />Cochilou.<br /><br />O tempo da soneca acabou, o despertador tocou novamente. Algum dispositivo no seu cérebro conectado à rotina disparou junto com o despertador, derramando em seus nervos o alerta de um possível atraso. Pulou da cama esfregando o rosto e correu para o chuveiro.<br /><br />Saiu do banho se espreguiçando e chamou:<br /><br />-Amor!<br /><br />Foi trazido abruptamente mais uma vez para a realidade.<br /><br />Um buquê, presenteado pelos colegas de trabalho, murchava sobre a mesa. As coisas espalhadas pela casa davam um ar morno e estagnado ao ambiente, e em sua mente ecoou a voz do chefe dizendo:<br /><br />-Tire a semana de folga...<br /><br />Sua respiração mudou. Seus olhos marejaram. Sentiu-se tontear, mas ao invés de desmaiar, uma dor lancinante, praticamente insuportável, atravessou seu peito. Um choro abafado se derramou copiosamente sobre seu rosto, que se contorcia abusando de toda a capacidade de seus músculos. A boca, aberta, escancarada como se não pudesse comportar o tamanho do grito que desejava dar, não emitia nem um único som. Atirou-se contra uma parede próxima como se desejasse que esta lhe estendesse os braços para dar colo, e deslizou até tocar o chão, que no momento era onde ele realmente se sentia estar.<br /><br />Houve um soluço. Um gemido. Um engasgo. Um suspiro.<br /><br />Sobre uma estante ele a viu sorrindo numa fotografia. Lembrou-se do dia em que fora registrada. Lembrou-se do motivo daquele sorriso e porque a amava tanto. E de repente, paradoxalmente, se flagrou sorrindo, ao perceber que sabia como ela gostaria que ele estivesse agora.<br /><br />E se levantou. Com os olhos firmes naquele sorriso, entendeu o que era aquela dor toda:<br /><br />Saudade. Um efeito colateral do amor verdadeiro.<br /><br />E pensou:<br /><br />-Muitos devem estar com saudade de mim também. Então, assim como você, meu amor, vou providenciar sorrisos que os motivem, caso algum dia eu vá embora de repente como você foi.<br /><br />Sentiu vontade de sair e voltar a viver. Uma vida que deixasse sua amada orgulhosa.<br /><br />Abriu a caixa de correio. Lá estava um bilhete carinhoso de uma senhorinha que morava ao lado:<br /><br />-Sinto muito por sua perda. Estou orando por você. Não fiz uma visita pois quis respeitar seu momento de luto. Se precisar de algo, não exite em me pedir. Que o Senhor Jesus lhe dê conforto nesta hora difícil.<br /><br />Dobrou o bilhete com carinho. Colocou no bolso. Enxugou uma lagrima que insistia em descer pelo canto do seu olho. Sorriu e disse:<br /><br />-Ele já me deu. Me deu um lindo sorriso, e trouxe à minha memória algo que me deu esperança.<br /><br /><img border="0" data-original-height="500" data-original-width="928" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s16000/Prancheta+11.jpg" /></div><br /><h3 style="text-align: left;"><span style="text-align: justify;">© Elos Surreais<br /></span><span style="text-align: justify;">Todos os direitos reservados.</span></h3>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7181039561815683229.post-53936235663633982732011-10-04T23:48:00.026-03:002021-01-30T23:59:41.282-03:00O Cavalo e a Mula<div style="text-align: justify;">Publicado em Outubro de 2011, este conto narra duas experiências surreais do ponto de vista dos animais que estavam presentes nos eventos narrados.</div><div style="text-align: left;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEglcNMLPZV4o3ASpOv4mI5vGdV8GTkNh5HeZTmt_H_M2V1xdkeEL4EEIyNTE1nkSDYAhyphenhyphenBL1zj-DPJAbZJeSf-UW4RzWzMoprGY9Wr4Gb0J9uw_DORwdR3wjoF65hOSB_jbkxggs_NKf-uR/s2048/7.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1283" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEglcNMLPZV4o3ASpOv4mI5vGdV8GTkNh5HeZTmt_H_M2V1xdkeEL4EEIyNTE1nkSDYAhyphenhyphenBL1zj-DPJAbZJeSf-UW4RzWzMoprGY9Wr4Gb0J9uw_DORwdR3wjoF65hOSB_jbkxggs_NKf-uR/w250-h400/7.png" width="250" /></a></div><br /><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><br /></div><div style="text-align: left;"><h1 style="text-align: left;"><div style="text-align: center;">O Cavalo e a Mula</div><div style="text-align: center;"><span style="font-size: medium;">Um diálogo pitoresco entre sobreviventes de experiências surreais</span></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Juliano G. Leal</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Bento Gonçalves, 2011</div></h1><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Cavalo: Olha, o susto foi tão grande que eu nem sei como sobrevivi.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mula: Eles não tem noção do que é isso cara! O pecado deixou eles cegos. E o pior é que a gente vê tudo e nunca pode falar nada.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Cavalo: Mas tu falou! Eu só pude relinchar bem alto e com toda a força. A sensação era de que eu ia morrer! Eu não queria derrubar o Saulo, mas não deu pra fazer nada. Todos falam que ele caiu do cavalo, mas a verdade é que nós dois caímos, assim como todos que estavam com a gente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mula: Eu hein! Ainda bem que eu só vi um anjo, hehehe. Mas ficar olhando aquela espada de fogo, na mão de um indivíduo com cara de poucos amigos, não era agradável. Foi instintivo, eu fui desviando de mansinho pra sair de perto dele. E o lance da fala, ah foi muito legal, mas eu só pude dizer o que o Senhor permitiu. Se eu pudesse dizer pro Balaão tudo que eu tinha vontade, ahhh meu amiguinho...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Cavalo: Hehe, eu entrei de gaiato na situação. Depois do tombo nem sabia onde era o chão! Quando encontramos o Ananias eu queria poder falar e pedir se não tinha uma oração pra tremedeira!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mula: Hahahaha, tu precisava ver a cara do Balaão, a tua deve ter ficado parecida. Mas sabe o quê eu ainda quero entender?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Cavalo: Hum?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mula: Depois de tudo que a gente passa com eles, servindo e até correndo perigo, porque que eles se xingam usando os nossos nomes, como se fôssemos coisas ruins?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Cavalo: Sei lá, acho que é uma manifestação subconsciente involuntária, de desejo pela nossa simplicidade, que acaba se manifestando ao contrário, de forma pejorativa e negativa.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mula: Wow, tu é bem inteligente pra um cavalo!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Cavalo: Claro, não sou burro!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mula: O quê?!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Cavalo: Ih, foi mal. É o excesso de convivência com os humanos...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s928/Prancheta+11.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="500" data-original-width="928" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s16000/Prancheta+11.jpg" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><h3 style="text-align: justify;">© Elos Surreais<br />Todos os direitos reservados.</h3></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-7181039561815683229.post-14526903303992867862009-04-30T01:39:00.020-03:002021-01-30T23:45:54.448-03:00O Criador e o Coelho<p style="text-align: justify;">Publicado em Abril de 2009, este conto narra o desespero de um coelho que é sequestrado para servir de entretenimento numa festa dos humanos.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjhKg_ZjVLP5cytvswwOQk2YYTnemQbDkMRPQXYsDKnFLae-iTX5nzX1rzI8ELybyEuHU-2Br-7YTT9iH25nriG73CXWW5_SnEdqzCL7aVIugKX_leO53BRSzqdUCvLOVQv9eUfCGDgqoPa/s2048/8_1.png" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1283" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjhKg_ZjVLP5cytvswwOQk2YYTnemQbDkMRPQXYsDKnFLae-iTX5nzX1rzI8ELybyEuHU-2Br-7YTT9iH25nriG73CXWW5_SnEdqzCL7aVIugKX_leO53BRSzqdUCvLOVQv9eUfCGDgqoPa/w400-h640/8_1.png" width="400" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><h1 style="clear: both;"><div style="text-align: center;">O Criador e o Coelho</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Juliano G. Leal</div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: center;">Porto Alegre, 2009</div></h1><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Um coelho estava acostumado a dar os seus passeios matinais pelo bosque onde morava. Todos os dias era sempre igual. Saía da toca, comia umas folhas, umas frutas, levava alguma coisa pra casa e continuava sua feliz rotina. Até que algo aconteceu.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Numa dessas tranquilas manhãs, de repente, tudo ficou escuro. Muito barulho se ouvia ao redor. Gargalhadas altas e uma voz rouca e potente que disse:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Eles vão adorar!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Um estrondo debaixo dos seu pés deu-lhe um tremendo susto e sentiu seu corpo totalmente a deriva sobre um espaço desconhecido. Começou a enjoar enquanto era era jogado de um lado para o outro naquele saco fedorento.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Subitamente, tudo parou. Ouviu passos, alguém o ergueu. Mais passos. Silêncio. O saco se abriu.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Um humano com a cara enrugada e os cabelos ralos e bem brancos o agarrou pelo cangote e o girou diante dos seus olhos. O humano sorriu encarando-o e disse:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Bem vindo ao seu novo lar, amiguinho! He he he!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">E o pôs numa gaiola. Enfiou uma folha de alface murcha entre as grades e um pote d'água pendurado nelas. E a montanha russa começou outra vez.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Saíram de um galpão e foram em direção a uma bela casa. Então o coelho orou desesperado:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Senhor Criador! O que está acontecendo, onde estou? Quero voltar para o meu bosque, onde eu te louvo todos os dias! Porque esse humano me pegou? Socorro!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">O velho entrou na casa. Crianças vieram recebê-lo com muita alegria. O velho mostrou-lhes a gaiola e disse:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Feliz Páscoa!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">O coelho disse ao Criador:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Essa data não é aquela que nós deveríamos ficar longe dos humanos?</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-É sim, coelho, mas dê uma olhada ao seu redor.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">O coelho olhou e ficou horrorizado. Haviam imagens e ídolos com formas de coelhos e ovos por todos os lados. No canto da sala havia um altar com quatro cestos cheios de oferendas diante de um plateau vazio. Uma das crianças disse:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Vamos colocá-lo ali!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">O coelho disse novamente ao Senhor:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Senhor, o que eles estão fazendo?! Isso é um erro! Eu não posso ser adorado! Parem com esse absurdo, me tirem daqui! Socorro! Quero ir embora!</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">E começou a se agitar dentro da gaiola. As crianças disseram:</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Vamos cantar pra ele se acalmar; "Coelhinho da páscoa, que trazes pra mim? Um ovo, dois ovos, três ovos, assim? Coelhinho..."</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">-Acho que se eu parar elas param...</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Se encolheu no canto. As crianças pararam e foram brincar.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">O tempo passou, a páscoa também e o coelho voltou para o galpão, onde a comida era fedorenta e o espaço apertado. Todos os dias ele lembrava do bosque.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Numa noite, o humano esqueceu as portas abertas, pois estava cheio de vinho. O Criador acordou o coelho e ele fugiu, voltando ao seu bosque.</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both;">Chegando lá, foi recebido com festa por sua família que agradeceram ao Criador por sua volta; mesmo ficando perplexos de saber que apesar de todas as coisas maravilhosas que o Criador nos proporciona, existem humanos que adoram coelhos...</div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s928/Prancheta+11.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="500" data-original-width="928" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMovXQt-tWjmtnxl8V7UAR1tox2qc8KYCLDBjmbgfJ0uVI9G1CeIq546EuokQlpsopVrG-B7f7BgtQ-dRslzi04beFCyqTa_I0pA5xCWNMAhBtBcgbC-nPNLINNuhN33zmB4f19whQc5BN/s16000/Prancheta+11.jpg" /></a></div><div class="separator" style="clear: both;"><br /></div><h3 style="clear: both;">© Elos Surreais<br />Todos os direitos reservados.</h3></div>Unknownnoreply@blogger.com